Olá, a quem quer que esteja do outro lado da tela!
Por ser a primeira vez que me dirijo a vocês, preciso dizer que minha escrita vem em fluxos descontínuos. Por mais que eu me esforce para torná-la rotina, mais sistemática, ela reflete muito de dentro e do que estou sentindo na hora. Escrevo agora – sem saber se vocês são muitos ou poucos, se me lerão todos os meses ou se cansarão logo nesse primeiro texto – de coração aberto e pedindo desculpas pelo mau jeito. Não me apresentarei, não darei currículo, nem referências. Acho que podemos ir construindo essa relação aos poucos, como uma amizade, um laço íntimo, entre quem escreve e quem lê, entre quem quer tocar e quem se propõe a ser tocado. Podemos fazer assim? Prometo trazer assuntos relevantes no meio deste falatório.
Dada essa breve introdução, a ideia aqui é falar bastante de livros, então começo por aí. Isso não é uma receita de bolo de “como todos deveriam ser”, é só um adianto do que posso oferecer: minha formação literária é diversa – vou desde o romance água com açúcar best-seller que é sucesso no TikTok ao livro de filosofia com linguagem acadêmica, passando pela poesia e com um pezinho nos clássicos.
Hoje resolvi falar de um livro que finalizei logo na primeira semana do mês de março: “Corpo desfeito”, da cearense Jarid Arraes, escritora negra e jovem assim como eu, publicado pela editora Alfaguara em 2022. Nele, somos apresentados à Amanda, menina de 12 anos, do sertão do Cariri, recém órfã de mãe, sem pai – como outras milhares de crianças brasileiras -, que passa a ser criada pela avó abusiva e violenta.
Dentre as muitas problemáticas que Jarid lança luz no livro, chama muito a atenção o grande processo de escravização ao qual Amanda é submetida pela avó. A menina passa, após a morte da mãe, pelo cerceamento de direitos básicos, o trabalho forçado e a produção de uma situação análoga à escravidão – agravada pela pouca idade da menina e pelo laço de sangue entre ela e a avó, que gera uma culpabilização baseada na dependência emocional.
Li a obra logo após as primeiras operações do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul, que resgataram centenas de trabalhadores de renomadas vinícolas gaúchas. Agora, escrevo este texto após uma fiscalização que detectou violação de direitos humanos e trabalhistas entre trabalhadores terceirizados do festival Lollapalooza, em São Paulo (situação, que aliás, se repete sistematicamente desde 2018 – uma rápida busca na internet nos revela isso). Nos últimos anos, mais especificamente no último mandato presidencial (rs), tivemos o sucateamento de órgãos responsáveis pela fiscalização, resgate de trabalhadores e punição dos escravagistas.
Lendo a obra de Jarid Arraes e sabendo 1. do grande histórico brasileiro mal resolvido quando o assunto é escravidão, e 2. dos acontecimentos recentes, foi impossível não relacionar as coisas. A Amanda de Jarid Arraes é, em parte, retrato de milhares de outros rostos que se veem capturados em um regime de servidão onde muitas vezes não há espaço para que enxerguem e denunciem a própria situação.
Passado o pior da tormenta política no Brasil, é preciso zelar e cobrar o novo governo pela reestruturação dos órgãos responsáveis por coibir que situações como essas sigam se multiplicando. A literatura e a história do país nos mostram que o assunto não é novo, os jornais nos mostram que não parece que vai acabar tão cedo. Lutemos pela dignidade das relações de trabalho.
Por Luiza Lunardi, jornalista e colaboradora convidada
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