Assim como os que desenham paisagens se põem num nível mais baixo a fim de discernir a natureza das montanhas (…) e para considerar a natureza dos locais baixos se põem no topo das montanhas, do mesmo modo, para bem conhecer a natureza dos povos, é preciso ser príncipe e, para bem conhecer a natureza dos príncipes, é preciso pertencer ao povo.
(Maquiavel, citado por Gaddis, John Lewis, As Grandes Estratégias)
Ao abrir o site da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, lá estava uma foto bonita, que chamava a atenção do internauta para evento de hoje. Mas o pensamento foi longe. A imagem coloca totalmente em xeque a citação acima de Maquiavel. Em 2023, os príncipes e o povo continuam sem afinar o entendimento uns dos outros. Esse olhar de baixo pra cima, de cima pra baixo não funcionou. Aliás, tem servido para uma “empatia quase nula”.
Vale uma descrição da fotografia: é noite, mas há luz na entrada da casa humilde. Na frente da construção, uma mãe quilombola posa com cinco filhos. Todos mantêm os olhares atentos, cheios de expectativa (de quê?). O que aconteceria após o “clique”? À janela, está uma outra mulher. Dentro da casa, na entrada, sentada numa cadeira, uma terceira pessoa olha curiosa na direção do fotógrafo. A cerca de madeira ao fundo é de uma simplicidade tocante.
Ao posar para o retrato, que está nos arquivos do Ministério de Minas e Energia (MME), a família aguardava algo. Está explícito nos olhares de cada um. E não é difícil decifrar o quê: aguardava dignidade. Esta mensagem está em toda a cena registrada. É fácil de observar: adultos e crianças escolheram roupas para a ocasião; as meninas fizeram penteadinhos. Dignidade! Uma Era de Dignidade, por favor!
Esta semana, a foto foi usada para ilustrar reportagem da Agência Câmara, que debaterá a situação dos quilombolas no Brasil. “Serão realizadas três mesas-redondas abordando os seguintes temas: Censo 2022 do IBGE — populações quilombolas; propostas de políticas públicas e defesa dos direitos das mulheres quilombolas do Brasil; e políticas de combate ao racismo e o respeito e a efetividade dos direitos das comunidades quilombolas”.
Não há dúvida. São debates fundamentais para o país. Mas é de se perguntar quando a Era da Dignidade chegará concretamente aos quatro cantos do país. Afinal, na própria capital federal, homens, mulheres e crianças vivem em extrema miséria e circulam angustiados por vias apelidadas de tesourinhas e superquadras na busca por arrancar alguns trocados (mesmo que via PIX) de quem passa. “Já estou cheio de me sentir vazio. Meu corpo é quente e estou sentindo frio”, cantaria a Legião Urbana em seu Badder Meinhof Blues.
A paisagem humana da miséria no Planalto Central está mudando. Até o início do milênio, era possível a todo repórter da editoria de Cidades dos principais jornais locais, se fosse mais sensível e atento, saber qual pedaço do asfalto do Distrito Federal cada mendigo ocupava para “viver”, “dormir”, “pedir”. Havia personagens clássicos de reportagens inspiradoras, que assistentes sociais e o governo não conseguiam separar das ruas de maneira alguma: a moça com o lenço na cabeça, latinha amassada na mão (ainda hoje na labuta); a falsa mendiga que trocava de roupa para que, maltrapilha, juntasse dinheiro (objeto de reportagem premiada da Globo local); o idoso apaixonado pela mulher que construiu um carrinho de madeira maior para que pudesse carregá-la DF afora, atrás do que comer. Ela não podia mais andar.
Mas hoje há uma nova pobreza chegando, muito forte na sua dor e sofrimento, a qual não se sabe exatamente de onde vem nem para onde vai. São tantos homens e mulheres que tendem a ficar invisíveis. Precisam de dignidade. Mas, ironicamente, falta execução de políticas públicas no centro das decisões do país. Isso, principalmente para aqueles que se veem vencidos pela droga que compram em algum inferninho, em algum faroeste caboclo que Renato Russo não pode mais cantar. Andam pelas comerciais em passos desesperados, tão diferentes do que esperava Lucio Costa ao traçar as duas primeiras retas que dariam origem ao Plano Piloto.
Pelas curvas premiadas e tombadas de Brasília, regadas a concreto pela criação de Oscar Niemeyer, há uma nova paisagem humana surgindo. Vem de outros cantos do país. Mas, infelizmente, os políticos, os príncipes dos tempos modernos, depois dos debates nas comissões do Congresso Nacional… pegam aviões para seus estados. E vão. Vão… embora.