16 de novembro de 2023 | Clima, Estratégia ESG, Impacto social, Sustentabilidade, , , ,

Um sol para cada um

Por Kelly Lima

Calor

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Pego emprestada de Tolstoi a frase de 1878 que abre o romance Ana Karenina para fazer uma analogia aos dias que estamos vivendo.

Céu de brigadeiro. Azul sem nuvens. Sol resplandecente. Brincadeiras à beira mar, beira rio ou embaixo da cachoeira. Muita água para refrescar. Um feriado para chamar de seu. Um dia para vadiar. O calor feliz é democrático e igual para todos.

O que estamos vivendo, no entanto, passa longe desse quadro. Traz infelicidades a cada qual de sua maneira. Os dias mais quentes em 125 mil anos. Ondas recordes de temperatura ultraelevada e eventos extremos como chuvas, secas e climas desérticos já detectados onde nunca dantes. E aí é que a democracia desaparece e as nossas desigualdades se sobressaem.

Aos que saltam entre os ambientes de ar-condicionado do escritório para o uber, e de lá para casa, ou nem se aventuram a pisar no asfalto que frita ovos, parece inimaginável que alguém possa se aglomerar em ônibus lotados com janelas fechadas ou semiabertas, sem o mesmo ar- condicionado, no calor de mais de 52 graus medidos nesta semana no Rio de Janeiro. Por horas. Para chegar ao trabalho que, na maior parte das vezes, também não tem o mesmo privilégio do aparelho criado em 1902 pelo bendito norte-americano Willis Carrier.

Parece impensável dormir sem esse refresco, e completamente fora de realidade aceitar que alguém viva sem uma torneira de água, ou um banho fresco ao fim do dia. E beber uma água, uma coca, uma cerveja gelada? Nada. E olha que nem estamos falando do filtro solar, necessário para 100 entre 100 pessoas que minimamente atravessam a rua sob o sol escaldante, o que dirá de garis, ambulantes e demais servidores que atuam em ambiente externo sob o sol.

Segundo a OMS, o calor mata 15 milhões de pessoas anualmente. Nós que nos acostumamos a ver a crise climática apenas a partir de efeitos tangíveis como uma enchente, a ressaca que elevou o mar, uma seca, queimada, ou aquela foto das geleiras derretendo que nos parecia tão distante, não percebemos que essa ameaça está na pele. Morre mais gente em decorrência de complicações do calor do que de todos os demais extremos climáticos. Estamos falando de desidratação, problemas renais, câncer de pele e mesmo as doenças negligenciadas que tendem a se multiplicar ainda mais com o calor extremo. Basta lembrar que aqui no Brasil, ano passado, mais de 1 milhão de pessoas contraíram dengue.

É uma questão de saúde pública, como bem colocado por Flávia Oliveira no podcast Angu de Grilo da última terça (14/11). Por que não recebemos da Defesa Civil o mesmo alerta que vale para chuvas fortes quando a temperatura excede determinado limite? Vamos suspender as aulas a partir de que temperatura? E onde deixar essas crianças sem aulas, considerando que os pais não poderão parar de trabalhar para cuidar delas e nem elas mesmas terão clima mais fresco em casa? Abrigar pessoas por mais tempo em shoppings centers, museus ou outras áreas de lazer que sirvam temperaturas mais amenas? Quais medidas devem ser tomadas para os novos tempos ditos normais?

Vamos podar árvores para impedir que nas ventanias elas derrubem a energia, ou vamos plantar mais árvores para contribuir com a redução da temperatura nos grandes centros? Vamos isentar de impostos os aparelhos de ar-condicionado para torná-los mais acessíveis, ou com isso estamos contribuindo paradoxalmente para aquecer ainda mais o planeta, como lembrou Regina de Sales Magalhães, na Capital Reset ontem? 

Cientificamente, no século XIX, o calor era comumente dividido em duas categorias: luminoso e obscuro. O calor luminoso tratava da luz emitida pelo corpo, e o obscuro era o que era transportado pelo corpo, o que não é visto.

Talvez essa explicação científica já traduzisse a tal (in)justiça climática e as desigualdades que só aumentariam as diferenças de entendimento do calor entre as “famílias”. Felizes e infelizes. Cada qual à sua maneira.

Por: Kelly Lima