Em setembro celebramos o ‘Mês da Filantropia que Transforma’, uma campanha que visa promover, incentivar e fortalecer a cultura de doação e a filantropia no país. Diversas ações são realizadas para conscientizar a população sobre a importância da doação, seja ela financeira, de tempo, recursos ou conhecimentos, em prol de causas de interesse público e de instituições que trabalham para melhorar a qualidade de vida das pessoas. A filantropia profissional tem várias limitações, mas é oportuno refletir sobre o potencial deste campo de atuação para apoiar as transformações sociais.
Trabalho com filantropia há mais de 10 anos e acredito que o setor tem um potencial enorme para tornar o Brasil um país mais democrático, menos desigual e mais resiliente às mudanças climáticas. Não se trata de sonho ou idealismo, mas sim convicção de que é um setor que reúne condições essenciais para instigar na sociedade um olhar menos óbvio, menos burocrático, menos conformado em relação à nossa realidade e à nossa capacidade de transformá-la. Essas condições para mim se resumem em propósito, recursos e liberdade criativa.
A filantropia enquanto prática profissional é muito heterogênea. Mas toda organização filantrópica tem um forte senso de propósito: uma motivação profunda e significativa para as próprias ações, algo que guia e dá sentido à existência da organização e um senso de direção e ação voltado ao bem-estar coletivo.
O propósito institucional pode ser pautado por interesses pessoais do(a) fundador(a) da organização filantrópica, e isso pode ser um limitador. Contudo, os profissionais da filantropia também trazem os seus propósitos consigo ao escolherem trabalhar no setor. Querem contribuir para algo maior, como melhorar a comunidade onde estão inseridos ou lutar por causas importantes. A vida de quem atua na filantropia não é mais fácil por isso, mas emana neste campo um sentimento de conexão, valorização e preservação do senso de coletivo que vai muito além das realizações individuais. Sem fortalecer a dimensão pública e o interesse coletivo, não tem como sonhar com a transformação social e com o fortalecimento da democracia no mundo atual.
Um forte propósito coletivo é algo essencial, mas, sem recursos, a capacidade de ação fica muito limitada. Afinal, a filantropia profissional tem o privilégio de poder canalizar todos os recursos para formular, experimentar e apoiar processos de transformação social.
Sabemos que o volume de recursos filantrópicos é muito menor do que o do poder público ou do setor privado. De acordo com o Censo GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) de 2020, as organizações que fazem parte do grupo (formado por empresas, fundações e institutos privados) investiram cerca de R$ 5,3 bilhões em projetos sociais no país naquele ano. É significativo, mas equivale a cerca de 2,5% do orçamento do Ministério da Saúde naquele ano e menos do que os bancos Itaú ou Bradesco distribuíram em lucros naquele mesmo ano, considerado um dos mais desafiadores em virtude da epidemia de covid-19.
Contudo, não devemos analisar o potencial transformador da filantropia com base apenas no seu volume financeiro. Um exemplo interessante é o do Festival Live Aid, organizado em 1985 para sensibilizar o mundo para a crise de fome na Etiópia e arrecadar recursos para a causa. O Live Aid teve um custo estimado de US$ 5 milhões e arrecadou cerca de US$ 125 milhões, além de ter tido um impacto intangível de mobilização social difícil de mensurar até hoje, quase 40 anos depois. Um pequeno exemplo de que a filantropia profissional se faz com todo tipo de doação, e não apenas a partir de fortunas de milionários(as).
O terceiro componente essencial da filantropia profissional transformadora é a sua liberdade criativa. Sabemos que a transformação social é um processo caótico, dinâmico e complexo, mas, se para algumas pessoas esse caos é o pano de fundo no qual transcorrem os dias, para a filantropia esse processo é objeto de permanente análise, experimentação e sistematização de conhecimento.
As filantropias têm o privilégio de poder apoiar a criação de projetos de interesse público que desafiam o status quo e o senso comum, algo fundamental para qualquer processo de transformação. O movimento Amazônia de Pé, lançado em 2021 em um contexto social e político desafiador, reúne mais de 20 mil ativistas e 300 organizações e coletivos, e é um exemplo desta potência criativa que une a sociedade civil e filantropias em prol da proteção da floresta e dos povos da Amazônia.
Conforme nossos desafios enquanto humanidade vão ficando mais complexos e difíceis de resolver, vai ficando mais desafiador manter o sonho da transformação social e de um mundo mais justo, pacífico e harmônico. É nesse momento de frustração e confusão que a prática da filantropia enquanto um ato de generosidade se torna ainda mais necessária. Afinal, com propósito, recurso e liberdade criativa, é possível fazer muita coisa para mudar o mundo ao nosso redor.