Nas comissões parlamentares de inquérito em funcionamento no Congresso Nacional há um jogo durante as inquirições que vai muito além do “eu pergunto, você responde”. Há um preparo minucioso, realizado por muitos dos parlamentares, no papel de sabatinadores, que exige mais do que mergulho na parte técnica do tema em pauta. Assessores são destacados para prepará-los, inclusive no que diz respeito à performance, à linguagem não-verbal, aos gestos mais teatrais.
Por outro lado, os depoentes também se preparam para a arguição. Estudam o tema a ser debatido. Alguns contratam empresas de relações institucionais e agências de comunicação para lhes ajudar a elencar possíveis perguntas, elaborar respostas com mensagens-chave, desenvolver narrativas que sejam fortes para convencer, para persuadir. Fazem simulações duras dos piores cenários possíveis. Treinam.
No mundo acadêmico, da linguística ou comunicação, analistas do discurso estão sempre atentos aos textos produzidos pelos diferentes lados, dentro de seus contextos. Afinal, discurso é o texto em seu contexto, como diria o autor Dominique Maingueneau. Analistas dos discursos vibram ao interpretar silêncios, ditos e não-ditos. E CPIs são matéria-prima para aqueles que buscam o diabo nas entrelinhas. Afinal, o diabo mora nos detalhes. Nem sempre para o mal, diga-se de passagem. O conflito tende a trazer maior lucidez aos contextos. CPIs podem ser úteis neste aspecto.
Uma breve análise da CPI do MST para ilustrar: semana passada, chamou a atenção pergunta do relator Ricardo Salles (PL/SP) ao líder nacional do movimento, João Pedro Stédile. “Eu gostaria de ouvir a sua opinião com relação ao agro. (…) Do ponto de vista de receitas, desenvolvimento, tecnologia, emprego… O senhor entende que esses indicadores são suficientemente relevantes para reconhecer que o agronegócio cumpre um papel muito relevante ao nosso país?”
A pergunta parecia estranha porque levantou a bola para que Stédile cortasse, discorrendo por longos minutos sobre o tema que mais conhece: economia agrária. Muitos estranharam a estratégia do relator. Mas, ali, o discurso ia além da inquirição de Stédile. Salles usava o espaço para chamar a atenção dos ruralistas e os convidava para a arena de batalha. Segundo fontes, nos bastidores, naquele dia, o relator estava incomodado com boatos de que lideranças da bancada do agro estariam se alinhando com o governo e forçando a barra para que a CPI acabasse sem espaço para prorrogação ou relatório muito detalhado.
Por sua vez, Stédile agradeceu a pergunta e saiu falando sem parar. Resumindo, para ele, o agronegócio está rachado no Brasil: “há os empresários que vão para o Céu e os que não vão”. Mas até chegar lá, o líder do MST usou boa parte do tempo de inquirição contando toda uma história de 30 anos no país. Abusou de técnicas de retórica que cansaram parlamentares, mas o aproximaram ainda mais de seu público.
Hábil na oratória, usou linguagem simples, com sotaque regional e certos erros gramaticais, que o emprestaram aura de autenticidade. Principalmente para seu público: o MST, a esquerda, o governo. Em sua zona de conforto e pertencimento, pôde manter a voz mansa, até ao ironizar. Ao mesmo tempo, empregou tom acadêmico, um certo economês traduzido para as massas, o que lhe dá credibilidade e legitimidade para tratar da causa que defende.
Entre as armas da retórica estava a repetição de palavras numa mesma frase propositalmente por Stédile, dando sensação de opressão. Foi o caso da expressão “se apropria”, que foi martelada no ouvido do público numa escalada que visava convencer contra os donos de terras improdutivas. Vale observar no parágrafo a seguir: o crescente da fala de Stédile, de repente, é quebrado por uma pergunta. E para ela, uma resposta seca e dramática: “Nenhum”.
“Nesses 30 anos, na agricultura brasileira, confrontam-se três modelos. O primeiro é o latifúndio, modelo em que o capital é predador da natureza. Ele não se interessa em produzir. Ele quer se apropriar dos bens da natureza. Ele se apropria de terra pública, ele se apropria da madeira, ele se apropria dos minérios, ele se apropria até da água, da biodiversidade. E acumula riqueza com isso. Mas qual o benefício desse modelo para a sociedade? Nenhum.”
E continuou Stédile sobre o segundo modelo, o agronegócio: “Produz riqueza, mas não desenvolve o país. São grandes propriedades, usam as técnicas mais avançadas: semente transgênica, mecanização e agrotóxico. E produzem o quê? Commodities para exportação, repetindo o modelo agroexportador colonial, que não necessariamente representa distribuição de riqueza para a nossa sociedade”.
E voltando ao relator de forma irônica: “O que eu percebo – para você não me chamar de radical, Salles – é que o agronegócio está dividido. Uma parte dele já tem consciência dos limites e está migrando para uma agricultura que eles chamam de regenerativa. Então eu acho que uma parcela do agronegócio ainda vai para o céu. Eles se deram conta de que podem ganhar dinheiro e aumentar a produtividade com outras práticas. Agora aquele agronegócio burro, que só pensa em ganhar dinheiro de forma fácil, este está com os dias contados”.
Por fim, Stédile falou da agricultura familiar: “que é a que se dedica a produzir alimentos, que em geral não usa agrotóxico, que é respeitoso com o meio ambiente porque ele sabe que se derrubar a árvore vai desaparecer a água”.
Do lado de fora da briga, uma semana depois da CPI do MST ferver, o deputado Domingos Sávio (PL/MG) comentou o ambiente pela Frente Parlamentar da Agropecuária: “Ao invés de transformar isso só num processo de ataques de um lado e de outro, nós temos que ter resultados concretos nessa CPI. Eu quero que a gente continue a ser um país livre. E, em um país livre, o direito à propriedade está inerente, está associado ao direito à liberdade. Portanto, se alguém invadir a propriedade do outro, ou invadir uma propriedade pública, como as propriedades da Embrapa, que são para servir ao interesse público; se alguém invadir, destruir patrimônio, está cometendo crime, e isso tem que ser tratado com o rigor da lei”.