Há cerca de dez dias, vídeos nas redes sociais e matérias na imprensa mostraram o prefeito de Barra do Piraí, no Sul Fluminense, Mario Esteves (Solidariedade), sugerindo “castrar” as meninas da cidade para controlar o crescimento da população. Como relata o Congresso em Foco, o prefeito falava sobre uma creche que será inaugurada em outubro. Reclamando da quantidade de crianças no município, Esteves fala em “castrar essas meninas”, porque “haja creche para ser construída nos próximos anos”. Também diz que deveria haver leis para restringir o número de filhos para “no máximo dois”, “porque precisa sim desse controle e é muita responsabilidade colocar filho no mundo”.
A fala de Esteves ganhou grande repercussão. De imediato, ele foi expulso do Solidariedade pelo diretório estadual do partido no Rio de Janeiro. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) abriu um inquérito contra o prefeito para investigar possíveis excessos do discurso e uma eventual responsabilidade no âmbito da improbidade administrativa. Já a Câmara Municipal de Barra do Piraí rejeitou, por 7 votos a 2, abrir um processo de impeachment de Esteves. Dos 11 vereadores da cidade, nove são homens.
Esteves pediu desculpas em vídeo publicado nas redes sociais. E alegou que cometeu um “equívoco”, ao trocar o termo “laqueadura” por “castrar”. O que, no frigir dos ovos, dá no mesmo. E não altera em nada a essência de seu pensamento: mulheres são as únicas responsáveis por “colocar filhos no mundo”. E quando são pobres – e em grande maioria negras –, a “responsabilidade” é ainda maior e chega à culpa exclusiva.
“Infelizmente discursos como estes não são uma exceção. No Brasil, esse é um longo debate que remete às discussões sobre controle de natalidade, frequentemente conduzidas a partir do viés coercitivo acerca da sexualidade feminina. Gestores públicos compartilham a crença no excesso populacional, supostamente ocasionado pela reprodução ‘descontrolada’ de mulheres pobres”, avalia Camila Fernandes, antropóloga e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Em sua tese de doutorado, que virou o livro “Figuras da Causação: As novinhas, as mães nervosas & mães que abandonam os filhos”, Fernandes mostra como as vagas insuficientes disponibilizadas pelo poder público em creches e escolas gera a produção de estereótipos aplicados as mulheres pobres, em especial às moradoras de favelas. A pesquisa, feita numa comunidade na Zona Norte do Rio, debate temas como gravidez planejada, planejamento familiar, culpabilização da mulher, sexualidade desviante e noções de cuidado e negligência.
“A enunciação pública sobre a necessidade de ‘castração’ de ‘meninas’ remete à animalização de mulheres, sobretudo negras e pobres, num país de matriz colonial que tem no cerne de seu projeto de nação a violação de maternidades”, explica a antropóloga, neste post no Instagram.
Isso se torna ainda mais problemático quando as “meninas” às quais se refere o prefeito – e tantos outros gestores públicos, em sua grande maioria homens – são também alvo de fetiche masculino. A própria literatura consagrou esse desejo por adolescentes no clássico “Lolita”, de Vladimir Nabokov, que inspirou tantas histórias similares em que homens mais velhos se encantam por mulheres bem mais jovens e menores de idade. E que muitas vezes usam de violência para saciar seus desejos.
O país das “novinhas” fetichizadas, mas culpadas, e das “meninas que precisam ser castradas” é o mesmo onde 9 homens do Supremo Tribunal Federal (STF), formado por 11 ministros, vão decidir sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ação foi colocada a fórceps na pauta da corte por sua presidente, a ministra Rosa Weber, que está se aposentando, mas já votou a favor do tema.
Entretanto, a votação dos demais ministros, que Rosa tinha proposto para o plenário virtual, o que agilizaria a decisão, agora irá ocorrer em sessão plenária presencial. Isso após o pedido de destaque do ministro Roberto Barroso, que assume a presidência do STF nesta semana. Quando? Não se sabe.
Não custa lembrar ao prefeito Marcelo Esteves e a tantos outros homens que o Brasil registra 822 mil casos de estupro a cada ano – dois por minuto –, segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) divulgado em março. E a maior quantidade de casos de estupro ocorre entre jovens, com o pico de idade aos 13 anos, apurou o instituto.