Como será nosso futuro com a Inteligência Artificial?

O livro Inteligencia Artificial, de Kai-Fu Lee indica tendências para o nosso futuro cada vez mais associado a algoritmos

O futuro com inteligência artificial pode estar mais próximo de nós e de nosso mercado de trabalho do que imaginamos

 

Durante os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, a plataforma chinesa de notícias Toutiao trabalhou com a Universidade de Pequim para criar uma espécie de “repórter virtual”. O sistema escrevia artigos curtos com resumos dos eventos esportivos logo depois do apito final.

O texto não era exatamente um primor em estilo, mas, pelo menos nos quesitos de produtividade e velocidade, obteve resultados impressionantes. O “repórter” produzia resumos curtos dois segundos após o término de cada jogo, e “cobria” mais de 30 eventos esportivos por dia.

O episódio é narrado em “Inteligência Artificial” (Globo Livros), de Kai-Fu Lee, CEO da Sinovation Ventures, uma das líderes globais do mercado de investimentos na área de tecnologia. Nascido em Taiwan, Lee migrou ainda criança para os Estados Unidos, onde cursou algumas das melhores universidades na área de engenharia da computação. Antes de fundar a Sinovation Ventures, Lee foi presidente da Google China e executivo de empresas como Microsoft e Apple.

O livro não aborda especificamente os impactos da inteligência artificial na comunicação e no jornalismo, mas os reflexos mais amplos dessa tecnologia nas empresas e nos empregos de um modo geral. Por isso, vale ser lido por profissionais de qualquer área que tenha interesse em conhecer as perspectivas do ambiente de trabalho nos próximos anos, em meio a uma presença cada vez maior dos algoritmos.

O livro “Inteligência Artificial” leva a três conclusões:

  • Haverá impactos sobre empregos, que deixarão de existir nos próximos anos
  • Empresas norte-americanas e chinesas serão líderes isoladas nesse mercado
  • O contato humano continuará imprescindível, mas precisará de adaptações

Um pouco de história sobre a inteligência artificial

Quando se candidatou para o programa de doutorado em ciência da computação, no início dos anos 1980, Kai-Fu Lee escreveu a seguinte descrição em sua carta de intenção: “Inteligência artificial é a elucidação do processo de aprendizagem humana, a quantificação do processo de pensamento humano, a explicação do comportamento humano e a explicação compreensão do que torna a inteligência possível”.

Em uma explicação mais simples, podemos definir inteligência artificial como um campo de estudo acadêmico voltado para o desenvolvimento de sistemas capazes de tomar decisões a partir de dados armazenados.

Seja como for definida, a inteligência artificial parte do princípio do aprendizado de máquina, que a acompanha desde os seus primórdios, em meados dos anos 1950. Durante muitos anos, explica Lee, o campo da inteligência artificial ficou restrito basicamente a duas abordagens.

Uma delas é a “baseada em regras”, que funciona bem para jogos simples, a partir de comandos “se X, então Y”. A de “redes neurais”, por sua vez, busca ensinar ao computador os mecanismos dominados pelo cérebro humano. A ideia é reproduzir as teias emaranhadas de neurônios nos cérebros dos animais, uma vez que essa seria a única forma de criar inteligência como a conhecíamos.

A base dessa abordagem é a construção de neurônios artificiais que podem receber e transmitir informações em uma estrutura semelhante às nossas redes de neurônios biológicos. No lugar de regras pré-estabelecidas, os construtores de redes neurais inserem muitos exemplos de um determinado fenômeno, e o próprio sistema identifica padrões nesses dados para fazer escolhas.

A abordagem por redes neurais esteve adormecida ao longo de décadas seguintes em virtude de barreiras tecnológicas, mais precisamente pela indisponibilidade de algoritmos capazes de processar um volume tão grande de dados. Além, é claro de equipamentos capazes de armazenar tantas informações.

Segundo Lee, as limitações somente viriam a ser superadas no início da década passada, com o aprendizado profundo, o conceito presente nas atuais gigantes digitais globais.

O exemplo no segmento de notícias e conteúdo

A China pode não ser a primeira referência que vem à mente quanto se trata de mercados consumidores de notícias e conteúdo de um modo geral. Eventos esportivos, por sua vez, tampouco impõem desafios de grande complexidade no levantamento de informações para fins jornalísticos.

O caso da Toutiao nos Jogos Olímpicos de 2016, contudo, serve para ilustrar uma forma de abordagem da aplicação de algoritmos em atividades antes desempenhadas exclusivamente por humanos.

Entre as inovações da plataforma está a utilização de algoritmos na identificação de fake news, muitas vezes sobre tratamentos médicos falsos. Inicialmente, isso era feito a partir de notícias etiquetadas pelos próprios leitores. Em uma etapa seguinte, o Toutiao, passou a usar esses dados etiquetados para treinar um algoritmo que pudesse identificar fake news na rede.

Finalmente, treinou um algoritmo separado para escrever fake news e, em seguida, colocou esses dois algoritmos um contra o outro. A competição levou ao aprimoramento de ambos.

Disputa pelo mercado global

Lee afirma no livro que a Toutiao é um exemplo da força da China na inteligência artificial na internet, o que se deve a um mercado local de 700 milhões de usuários, que funciona como um verdadeiro celeiro de gigantes globais. Isso ajudaria a explicar, por exemplo o rápido crescimento de empresas como Tencent e Alibaba, que já ameaçam a hegemonia global de Facebook e Amazon.

Números demonstram que essa abordagem da Toutiao orientada por inteligência artificial seduziu investidores, pelo menos até o momento. Criada em 2012, a plataforma já estava avaliada em US$ 20 bilhões cinco anos depois, quando conseguiu levantar uma nova rodada de financiamento que a avaliaria em US$ 30 bilhões.

O autor avalia que as empresas chinesas e norte-americanas estão no mesmo patamar na inteligência artificial na internet, com as mesmas chances de lideranças. Lee prevê que, dentro de poucos anos, as empresas de tecnologias chinesas terão uma pequena vantagem nesse mercado em relação às suas rivais norte-americanas, com uma fatia de 60%.

A explicação para isso seria a escala. A China tem mais usuários de internet que os Estados Unidos e Europa juntos, todos capazes de fazer pagamentos móveis simplificados para criadores de conteúdo e plataformas online destinadas a venda de bens e serviços de empresas físicas, as chamadas o2o (online to off-line).

Somado a isso, fazem a diferença também a disposição de empreendedores e profissionais qualificados e determinados incentivados por significativos investimentos do governo.

O impacto dos algoritmos nos empregos

Outra quebra de paradigma ilustrada pelo modelo do Toutiao diz respeito à questão do efeito dos algoritmos sobre os empregos. Trata-se de um modelo de negócios já concebido desde o início para atuar em um determinado segmento sem a participação de humanos em tarefas-chave. Por apresentar essa característica, a Toutiao representa um tipo de substituição de trabalho causada pela inteligência artificial que Lee denomina com o termo nada reconfortante de “destruição total”.

O outro processo de perda de empregos citada pelo autor é a não menos angustiante “substição um-a-um”, no qual os robôs substituem as tarefas de cada trabalhador na medida em que a tecnologia é lançada no mercado. Em resumo, há dois tipos de impactos: um que atinge todo o segmento de uma vez e outro por etapas, individualmente.

Segundo Lee, os economistas que analisam os impactos da tecnologia sobre o mercado de trabalho tendem a voltar suas atenções para as substituições individuais, por tarefas, e não consideram os modelos de negócios de “destruição total”. Nos próximos dez ou vinte anos, estima o autor, cerca de 40% a 50% dos empregos nos Estados Unidos estarão sujeitos a automação, em um desses dois tipos processos.

Profissionais na mira da substituição de empregos

Lee reconhece que os desafios causados pelos impactos dos algoritmos no mercado de trabalho são imensos, tanto na profundidade quanto na velocidade e no alcance. Segundo o autor, os vieses da inteligência artificial na substituição de empregos não se encaixam em uma métrica unidimensional tradicional entre a mão de obra pouco qualificada e muito qualificada.

Em vez disso, afirma o autor, as transformações criam uma bolsa misturada de vencedores e perdedores, dependendo do conteúdo específico de tarefas de trabalho realizadas. A partir de gráficos X-Y o autor organizou as ocupações em maior ou menor risco de substituição, sendo que cada quadrante identifica maior ou menor e envolvimento social e a necessidade de criatividade e estratégia nas atividades envolvidas.

Na área do trabalho cognitivo, por exemplo, analistas de empréstimos, analistas contadores representantes de serviço ao consumidor estariam na chamada “zona de perigo”, devido às menores necessidades de envolvimento social e de criatividade. Outras categorias são identificadas pelo autor como sujeitas a algum nível de substituição gradual de empregos, como analistas financeiros e jurídicos, médicos pesquisadores e designers, entre outros.

Na chamada “zona segura” Lee enquadrou os profissionais cujas funções teriam um perfil mais social e com escopo mais relacionado a criatividade e estratégia. Estão nesse grupo assistentes sociais, CEOs, psiquiatras e diretores de relações públicas, entre outros.

Outras categorias profissionais não estariam “zona segura”, mas, ainda assim, estariam bem posicionadas devido ao seu envolvimento social. Esses seriam os casos de professores, médicos (clínicos gerais), guia turísticos e consultores financeiros.

Necessidade de um novo contrato social

Ao analisar as possíveis soluções para a vida nos próximos anos, Lee chama a atenção para a necessidade de um novo contrato social que resulte em uma mudança de cultura e de valores. O autor relaciona uma série de caminhos para que as sociedades possam se adaptar para o que ele denomina como “transição da era industrial para a era da inteligência artificial”.

Lee fez uma detalhada análise das soluções propostas pelas indústrias do Vale do Silício para a questão, e as dividiu em Rs: reciclagem de trabalhadores, redução de horas de trabalho ou redistribuição de renda. Cada uma teria seu valor, mas é necessário ir além, dada a profundidade e a amplitude do impacto da inteligência artificial nos empregos.

A longo prazo, a educação seria a melhor solução, mas a escala e a velocidade das mudanças não deverão esperar a busca para nos ajudar a acompanhar e dar todas as respostas para as novas exigências. A solução defendida pelo autor para a estruturação de um programa de renda básica universal.

O formato proposto seria diferente dos benefícios tradicionais assistência social ou desemprego. O financiamento do programa, sugere Lee, viria de impostos sobre os vencedores da revolução da inteligência artificial: grandes empresas de tecnologia, corporações preexistentes que se adaptaram para alavancar a inteligência artificial e as pessoas que enriqueceriam com o lucro dessas empresas.

Seria um começo, mas ideia parece distante de países fora do eixo EUA-China, onde se concentram as gigantes do setor e que sofrerão em seus respectivos mercados de trabalho as consequências das mudanças.

O jornalismo dos algoritmos tem futuro?

A presença de atividades relacionadas a jornalismo e comunicação nas projeções de Kai-Fu Lee é praticamente inexistente. Mas vale considerar novamente o exemplo do Toutiao e seu jornalismo de algoritmos para reflexão.

O próprio Lee reconhece que, se alguém aplicasse a abordagem baseada em tarefas para medir a automatibilidade de um editor em um aplicativo de notícias, encontraria dezenas de tarefas que não podem ser executadas por máquinas.

Afinal, os robôs não podem ler e entender notícias e artigos, avaliar subjetivamente a adequação de um determinado aplicativo ou se comunicar com repórteres ou editores. Mas era justamente essa a intenção dos editores da plataforma, ou seja, essas tarefas foram simplesmente ignoradas pelos algoritmos do Toutiao.

A intenção, na realidade, era criar um aplicativo que pudesse organizar um feed de notícias que os usuários quisessem ler. Isto posto, fica a pergunta: será esse o jornalismo do futuro?

Se sim, as perspectivas são de “destruição total”, com empregos substituídos em escalas industriais. Se prevalecer o velho conceito da busca pela notícia, ou seja, da informação que mostra a “quebra da rotina” e propicia o debate, é possível pensar na “zona segura”. Com a palavra, o leitor.

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