Esta semana, o resultado de uma pesquisa interna chamou a atenção da nossa equipe. Ao buscar palavras-chave centralizadas no termo “mulher”, nos deparamos com um resultado intrigante, porém nada de novo. De acordo com a busca, os termos mais procurados quando inserimos a palavra “mulher” na ferramenta estão relacionados ao consumo de pornografia.
Diante disso, resolvemos buscar a palavra “homem” para comparar os resultados e, como esperado, o teor do que encontramos foi completamente distinto da busca realizada anteriormente. Nas primeiras posições não apareceu nenhum resultado que sexualizasse o corpo do homem.
Poderíamos escrever um texto sobre a sexualização dos corpos femininos ou como o consumo de pornografia interfere na visão e expectativas em torno das vivências das mulheres, mas o que mais no chamou atenção nessa pesquisa foi a disparidade de tratamento entre homens e mulheres. Essa distinção foi – e ainda é – muito naturalizada, o que esvazia todo um sistema de significados em torno das representatividades masculinas e femininas.
Como resultado disso, na prática, encaramos uma sociedade que de fato lida com homens e mulheres de maneira diferente e reproduz um sistema de poder que priva mulheres de direitos básicos simplesmente em função da sua condição de gênero.
Por mais que o movimento feminista tenha conseguido subverter muitas questões relacionadas à garantia de direitos da mulher, representatividade e empoderamento, ainda temos um longo caminho a percorrer para estabelecermos a plena vivência feminina. Principalmente quando olhamos a partir de uma perspectiva interseccional. Não podemos ignorar o fato de que o movimento feminista que protagoniza a luta pelos direitos das mulheres ainda é muito branco e cisgênero e, muitas vezes, ignora a vivência de mulheres trans e não-brancas.
Buscando colaborar para essa luta e reduzir a disparidade entre homens e mulheres, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5, estabelecido pela ONU com base em metas a serem atingidas até o ano de 2030, tem como pauta central a igualdade de gênero. De acordo com as metas específicas do ODS 5, vamos pontuar o porquê de a implementação dessas medidas serem tão necessárias e urgentes.
O que diz o ODS 5?
Metas 5.1, 5,4, 5.5, 5.a, 5.b, 5.c – Acabar com a discriminação, garantir direitos, estimular a representatividade
Quando pensamos em discriminação, precisamos ter atenção para o fato de que o tratamento distinto entre homens e mulheres não é resultado de uma diferenciação biológica apenas. Até porque, em um contexto cis-normativo, não poderíamos nunca levar apenas isso em consideração. A discriminação entre homens e mulheres é fruto de uma construção social que privilegia homens (brancos, héteros e cisgêneros), que ocupam tradicionalmente os espaços de poder na sociedade. Por ocupar esses espaços, eles ditam as regras.
O reflexo dessa discriminação se dá justamente na baixa ocupação dos espaços de referência da sociedade por mulheres. Como, por exemplo, em cargos políticos, em cargos gerenciais e em universidades enquanto docentes. De acordo com a 2ª edição das Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil, elaborada pelo IBGE, o percentual de mulheres entre os vereadores eleitos em 2020 foi de apenas 16%, já em cargos gerenciais foi de apenas 37,4%. Na docência do ensino superior, mulheres vem ocupando cada vez mais espaço, mesmo assim, ainda são minoria, totalizando 46,8% desses cargos. Quando pensamos nesses números relacionados às mulheres trans, a representatividade é ainda mais baixa, reforçando o apagamento dessas identidades e evidenciando a transfobia presente no Brasil.
Meta 5.2 – Eliminar a violência de gênero
A violência contra a mulher passa pela ideia de propriedade do corpo feminino que é constantemente reiterada a partir de uma visão patriarcal da sociedade, onde o homem – primeiramente na figura do pai e, posteriormente, na figura do marido – é detentor dos direitos das mulheres por tradição. Como exemplo, podemos citar o sistema de sobrenomes no Brasil. Até meados do século XX, após o casamento, era obrigatório que a esposa adotasse o sobrenome do marido no lugar do sobrenome paterno. Essa questão deixou de ser regra a partir do Estatuto da Mulher Casada, que entrou em vigor em 1962. As tradições não são ocasionais, elas possuem significado e estão sujeitas a configuração de poderes na sociedade. O rompimento desse sistema é significativo, é a afirmação de que mulheres são responsáveis por suas próprias vivências.
O reflexo do domínio masculino sobre o corpo das mulheres vai além da restrição de direitos. É refletido no assédio moral e sexual, no estupro e, no ponto mais extremo, no feminicídio. Segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2021, foram mais de 60 mil casos de estupro relatados no ano de 2020 no Brasil, sendo a maior parte caracterizada por estupro de vulnerável, com quase 40 mil relatos. Já o número de vítimas por feminicídio foi de 1.350 no ano de 2020, vindo em uma crescente desde 2016, onde o número registrado foi de 929. A 2ª edição das Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil nos traz informações complementares: 30,4% dos assassinatos de mulheres ocorreram dentro de casa, o que indica que parte desses crimes foram cometidos por pessoas conhecidas da vítima.
Metas 5.3 e 5.6 – Eliminar práticas nocivas e assegurar o acesso à saúde sexual
O casamento infantil, a mutilação genital feminina e a ausência do direito ao aborto seguro são práticas que também refletem o controle dos corpos das mulheres. No primeiro caso a ideia de posse fica bastante evidente, já no segundo e no terceiro casos, a intervenção é ainda mais direta no corpo feminino cisgênero. As principais vítimas dessas práticas são meninas, crianças e adolescentes, que ocupam uma posição de vulnerabilidade na sociedade, o que torna a resistência a essas situações ainda mais difícil.
O Brasil ocupa a quarta posição em número de uniões precoces no mundo, segundo o relatório Tirando o Véu: Estudo sobre casamento infantil no Brasil. Esse fato está relacionado ao imaginário popular que enxerga a menina como adulta após a primeira menstruação. O processo de transformação fisiológico do corpo feminino cisgênero, que permite a reprodução, se torna um aval para práticas sexuais muitas vezes criminosas, já que a relação sexual com menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável no país.
Reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos, a mutilação genital feminina ainda é uma prática comum em 30 países da África, Oriente Médio e Ásia. A Somália tem a maior incidência da prática no mundo, 98% das mulheres e meninas foram submetidas ao processo. A prática pode causar transtornos psicológicos e fisiológicos duradouros.
A ausência de uma política de saúde pública que garanta o direito ao aborto seguro ocasiona a morte de dezenas de mulheres todo ano. Segundo o DataSUS, o Brasil registra, a cada dia, mais de 500 internações por aborto. A cada 10 mortes registradas por aborto, 6 foram de mulheres pretas ou pardas, principais vítimas dessa prática, o que nos faz refletir sobre a desigualdade de acesso à saúde no Brasil.
Os dados trazidos servem para alertar e reforçar que a conquista de direitos é um processo árduo e constante. É preciso caminhar juntas sem perder a mira em uma sociedade mais justa e igualitária. Neste Dia Internacional da Mulher, em vez de romantizarmos a existência feminina, pensemos de fato no que é ser mulher – com toda sua especificidade e diversidade – em uma sociedade que trata nossos corpos com opressão, violência e nos priva de direitos, inclusive o direito à vida, desde a nossa infância.