Água e Agronegócio: Uma relação cíclica e perigosa – revisao

Água e Agronegócio: Uma relação cíclica e perigosa

Por Lia Ribeiro, da Equipe Alter

Estamos cada vez mais próximos de uma seca sem precedentes. A princípio, isso não deveria ser um problema para o Brasil que, junto com a Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, tem em seu território a maior reserva subterrânea de água doce do planeta, o Sistema Aquífero Amazonas. São cerca de 124 quatrilhões de litros de água. Em resumo, o volume de água explotável do sistema poderia abastecer a população brasileira por 14 mil anos. Para pensarmos na dimensão desses números,devemos considerar que, apesar de a Terra ser composta por 70% de água em sua superfície, o percentual de água doce e própria para consumo não chega a 1%.

A manutenção natural dos aquíferos ocorre exclusivamente por meio das chuvas que infiltram-se no solo, sendo assim, os períodos de estiagem influenciam diretamente no volume desses reservatórios naturais. A grande questão é que ainda estamos sob efeito de uma crise hídrica, ocasionada, dentre outros fatores, pela diminuição do volume de chuva nos últimos anos. Segundo o último Relatório Pleno, Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, elaborado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA, nos últimos dez anos houve uma redução significativa das vazões em grande parte do país, principalmente entre os anos de 2014 e 2017 e, posteriormente, no ano de 2020.

Outra questão que interfere diretamente no agravamento da crise hídrica é a poluição das fontes de água doce, principalmente dos rios e nascentes. De acordo com o Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2021, a poluição diminuiu a qualidade da água nos principais rios da América Latina. Além da diminuição do volume de chuva, que já seria preocupante o suficiente, o contexto de crise se agrava ainda mais quando constatamos que a quantidade de água própria para consumo disponível está sendo contaminada cada vez mais rápido. 

O que o agronegócio tem a ver com isso?

Tudo. Ou quase tudo. Primeiramente, tenhamos em mente que o setor agrícola é o principal responsável pelo consumo de água no país. Conforme mostra a figura abaixo, são utilizados quase 1.000 m³ de água por segundo para a irrigação de plantações, principalmente em locais onde não há chuva o suficiente, como no Semiárido brasileiro, ou em regiões com períodos de seca pontuais, como na região central do Brasil. Esse número representa quase 50% da retirada total de água no país dentre os setores analisados. Em quarto lugar está o setor pecuário, representando a criação de animais para abate e comercialização. Juntos, os dois setores representam cerca de 70% do consumo de água no país.  

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, 2021.

Não podemos ignorar o fato da agricultura e da agropecuária serem responsáveis pela produção de alimentos, essenciais para a sobrevivência humana. Entretanto, a realidade é que, no Brasil, a maior parte da produção agrícola é proveniente de monoculturas, em especial a de soja. Segundo o Dossiê Crítico da Logística da Soja, publicado pela ONG Fase em 2021, 90% da safra de grãos colhidos no Brasil em 2020 foram de apenas dois tipos, soja e milho. 77% da soja cultivada teve como destino final a comercialização em forma de farelo, utilizado principalmente na produção de ração animal.

Esse modelo de produção agrícola não tem como finalidade alimentar pessoas, pelo contrário, a prática da monocultura encarece outros alimentos, como o arroz e o feijão. A lógica por trás do aumento dos preços desses alimentos é baseada na lei de oferta e procura. De maneira resumida, a partir da valorização de apenas um produto, no caso a soja, a produção e, consequentemente, a oferta de outros produtos menos valorizados diminui, fazendo com que eles fiquem mais caros. Isso implica ainda numa disparidade de poder no setor agrícola, onde pequenos produtores perdem espaço no mercado que acaba sendo dominado por grandes empresários do agronegócio. 

Diretamente proporcional ao plantio de soja e à criação de gado está o aumento do índice de desmatamento no país. Levando em consideração os dados do estudo Illicit Harvest, Complicit Goods: The State of Illegal Deforestation for Agriculture, elaborado pela Forest Trends em 2021, o Brasil conseguiu reduzir significativamente a taxa de desmatamento após implementar medidas judiciais direcionadas aos produtores de soja e aos criadores de gado até o final de 2012, quando o índice voltou a subir. Em 2020, o aumento já tinha atingido um percentual de 26% a mais do que no ano de 2012, sendo o setor agrícola responsável por 20% e o setor pecuário responsável por 74% do desmatamento registrado. Nas figuras a seguir, podemos ter uma noção de como há uma tendência da ocupação das regiões centro-oeste e norte pelas atividades de monocultura e criação de gado.

A invasão do Brasil Central pelo monocultivo da soja

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: FASE, 2021

Mas e a água?

Temos no Brasil a maior parte da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, com cerca de 5 milhões de m², ocupando quase 60% do território brasileiro. Com essa magnitude, a floresta tem importância fundamental em relação à manutenção das águas do planeta, não apenas por abrigar 20% das águas doces, mas também por ser a maior fonte de vapor d’água para a região Norte e Centro-Sul do país, segundo o pesquisador e professor da USP, Paulo Artaxo. A partir de uma perspectiva técnica, Artaxo explica como ocorre a produção de chuva e a relação direta com o desmatamento.

“A produção da chuva ocorre por três razões diferentes: a termodinâmica da atmosfera, o vapor de água e os núcleos de condensação de nuvens. Todos têm que agir conjuntamente para que a chuva aconteça. Quando ocorre o desmatamento, a estratificação da atmosfera se altera, de um regime de condução térmica para um modo mais dinâmico, pela alteração da rugosidade de superfície”.

O mesmo processo de produção de chuva que ocorre na Floresta Amazônica, que teve 11.088 km² do seu território desmatado em 2020, acontece nas outras regiões de mata do país, guardada as devidas proporções.

Não bastasse o desmatamento provocado pelo agronegócio, conforme mencionado lá em cima, o setor ainda colabora para a redução do volume de água própria para consumo por conta da contaminação, principalmente, em função do ostensivo uso de agrotóxicos. Esses compostos químicos são utilizados na agricultura, principalmente em monoculturas, visando controlar a incidência de pragas e doenças que afetam as plantações. Na prática, esses produtos alteram a composição química da fauna e da flora relacionadas ao meio, diminuindo os danos naturais e aumentando a produtividade agrícola.

Além de serem extremamente prejudiciais à saúde, os agrotóxicos possuem amplo potencial de poluição do meio ambiente, intoxicando o ar, impregnando o solo e contaminando rios e águas subterrâneas. O processo de contaminação das águas ocorre após as chuvas, a partir do escoamento superficial dessas substâncias para os rios, e por meio da absorção das mesmas pelo solo, contaminando os lençóis freáticos. Dados de 2018, levantados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, confirmam que o setor agrícola, junto com o setor agropecuário, é responsável pela maior parte das substâncias tóxicas lançadas nas águas.

Conclusão

O setor agrícola brasileiro está entre os 5 maiores do mundo, sendo que, quando falamos de soja, o Brasil ocupa a primeira posição em termos de produção e exportação, concentrando 50% do comércio mundial do grão. Além disso, em 2020, o país era responsável pela maior criação de gado do mundo, representando 14,3% do rebanho mundial. Esses números impressionam quando pensamos pelo viés econômico, entretanto, esse modelo de produção é insustentável e teremos de lidar com as consequências logo em breve.

O desmatamento está influenciando a formação das chuvas, a poluição dos rios já está reduzindo o volume de água própria para consumo, não há espaço para desperdício. Ainda assim, contamos com o maior reservatório natural de água doce do mundo. É preciso repensar urgentemente o uso da água no país por meio de uma gestão mais planejada e efetiva. Caso contrário, a crise hídrica se intensificará cada vez mais rápido, causando problemas de abastecimento urbano e rural, prejudicando diversos setores da sociedade, inclusive o próprio agronegócio.

 

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