“Fico triste quando me chamam de velha. Tem hora que bate a solidão. Me arrependo de não ter cuidado um pouco mais de mim.”
Maria de Fátima Lopes sonhava em ser professora, mas foi obrigada pelo pai a largar a escola no ensino fundamental para ajudar a cuidar dos seus oito irmãos mais novos. Aos 21, pensou em voltar a estudar, mas dessa vez foi proibida pelo marido. Seu primeiro trabalho fora de casa foi aos 28, como doméstica. Só voltou a uma escola para retirar o lixo dos outros, lavar o chão, limpar a lousa e a parede, detalha matéria da Agência Brasil.
Hoje, aos 60 anos, a mulher negra que mora na periferia de Brasília ainda tem sonhos. Mas, como sua fala mostra, tem também medos, tristezas, arrependimentos. E solidão. Durante a semana, trabalha de 6h às 15h e vive sozinha em casa depois que volta “do serviço”. Nos fins de semana, assume o trabalho de cuidar dos netos.
Ontem, dia 1º de outubro, foi comemorado o Dia Internacional da Pessoa Idosa. E foi em 1º de outubro de 2003, há exatos 20 anos, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi promulgada a Lei 10.741, que estabeleceu o Estatuto do Idoso.
Passado todo esse tempo e algumas gerações envelhecendo, a pergunta que não quer calar é: quem cuida de Maria de Fátima Lopes e de tantas outras pessoas que, chegando aos 60 anos, cuidaram de tanta gente, mas não se sentem ou não são cuidadas como mereceriam ser?
A matéria da Agência Brasil lembra que, quando o Estatuto foi aprovado, a população idosa no Brasil era de aproximadamente 15 milhões. Hoje mais que dobrou – são mais de 33 milhões. E segundo a pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os desafios com pessoas em vulnerabilidade ainda são do tamanho de um país diverso como o Brasil.
“A própria Constituição (de 1988) fala que os pais têm que cuidar dos filhos e os filhos devem cuidar dos pais. Mas, na verdade, o que se tem é que as mulheres são as principais cuidadoras. Mas, depois, não tem quem cuide delas”, afirma Camarano.
Sim, o envelhecimento não se dá de forma igual para todos. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, isso acontece não por uma decisão individual de cada pessoa. Articulações de gênero e de raça modificam a perspectiva da passagem do tempo.
No Brasil, o direito de envelhecer é tomado da população negra, como mostrou uma pesquisa do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria com o Itaú Viver Mais. E o direito de receber cuidados na velhice é retirado das mulheres – que continuam sendo eternamente cobradas para assumirem o papel de cuidadoras, como se fosse algo “natural” da condição feminina.
Mas, de modo geral, mesmo com um estatuto determinando ações e políticas públicas, mesmo com o estímulo à inclusão de idosos e idosas no mercado de trabalho, mesmo com as tentativas de combate ao etarismo e à discriminação por idade – que também são ações de cuidado –, a solidão, o descuido, o abandono e o medo do amanhã são latentes.
Pesquisa do Serasa divulgada pela CNN mostra que sete em cada 10 idosos brasileiros não consideram que o dinheiro da aposentadoria é suficiente para viver – e vale lembrar que muitos idosos ainda são os provedores de suas famílias. Além disso, 58% dos idosos consideram que não conseguiram se planejar financeiramente para essa fase da vida. E um terço daqueles acima de 60 anos está consumindo reservas financeiras que acumulou ao longo da vida. O que indica que dois em cada três idosos deste país não conseguiram “juntar dinheiro” para a velhice.
Isso tudo acontece em um Brasil que está envelhecendo a passos largos, com sua população idosa morando cada vez mais sozinha e de aluguel. Foi o que mostrou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em junho, mostra Carlos Madeiro no UOL.
Os desafios estão dados e são imensos. E não se restringem a decisões governamentais. Cada vez mais empresas e organizações precisam se envolver na tarefa de cuidar de quem cuidou. Mais uma vez, estamos falando de dignidade humana. Um direito que deveria ser básico, mas que ainda é restrito. O que pode – e deve – ser mudado.
Enquanto isso, vale assistir na noite desta segunda-feira (2/10), na TV Globo, o especial “Falas da vida”, da antologia “Histórias Impossíveis”, protagonizado por Andrea Beltrão e Zezé Motta, quem tem como tema o envelhecimento. Como destaca Ancelmo Gois em O Globo, o episódio tem como trilha sonora o samba “O Amanhã”, enredo da escola de samba carioca União da Ilha do Governador de 1978, que é “mais uma camada de simbolismo na linguagem do especial”, diz o jornalista.
De fato, não sabemos como será o amanhã. Mas podemos fazer com que hoje ele seja melhor.