Na semana passada, houve uma absurda execução de três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Segundo as investigações policiais preliminares, um deles foi “confundido” com um miliciano jurado de morte por traficantes – ou por milicianos rivais, afinal, nunca se sabe ao certo os “graus” de criminalidade já tão naturalizados no dia a dia da “Cidade Maravilhosa”. Em tom de deboche – na verdade, de desespero –, fiz um story no Instagram pedindo que as autoridades disponibilizem fotos dos milicianos jurados de morte. Com isso, poderíamos tentar não nos parecer com eles e, assim, evitaríamos ser exterminados “por engano”.
Um amigo, de seus 50 e poucos anos como eu, gay como eu, mas negro, enviou-me um WhatsApp comentando o caso. Ele ressaltou que, como negro, não sabia se tinha mais medo da milicia ou da polícia. Na nossa troca de ideias, disse que agora, pelo fato de estar mais velho, sentia menos o racismo estrutural, mas deu um exemplo explícito de sua operação: “imagine eu e você entrando juntos de chinelos e roupas simples num hotel de luxo ou num lugar mais requintado. Você vai entrar de boa, parece gringo. Eu vou ser observado e até barrado”.
A fala do meu amigo ressaltou algo que pessoas pretas, mulheres, LGBTQIAPN+, enfim, pessoas de grupos minorizados, sabem de cor: se você não é homem, branco e heterossexual, cuidado! Dificilmente você vai poder ser quem é. Não em todos os lugares, com todas as pessoas, em todos os momentos.
É assim quando pessoas pretas com chinelos e roupas simples – algo que deveria ser muito comum em uma cidade com clima cada vez mais tórrido como o Rio e tantas outras Brasil afora – entram em lojas e são vigiadas à distância ou mesmo de perto, muitas vezes por pessoas pretas como elas. É assim quando mulheres não podem ficar sozinhas em pontos de ônibus, sob o risco de sofrerem assédio e violência – o que motivou, em São Paulo, um serviço de “companhia” em algumas paradas. É assim quando pessoas LGBTI+ precisam “entrar no armário” em determinados lugares ou grupos, em família ou no trabalho, evitando até mesmo demonstrações de carinho e afeto, sob o risco de serem agredidas, verbal ou fisicamente.
E antes que você, homem, branco, heterossexual, levante-se e diga “mas eu não sou assim”, entenda de uma vez por todas que não se trata de algo pessoal ou individual. Não é com você como pessoa física, mas como “pessoa jurídica”, como um grupo que, sim, precisa reconhecer seus privilégios e sua dominação e, sobretudo, engajar-se na luta contra esses privilégios e essa dominação.
Para entender do que estamos falando, vale ler a entrevista do presidente da Fundação Ford, Darren Walker, à Folha de S. Paulo, indicada na seção “Entrevistas” abaixo. Walker é o primeiro homem negro e gay a comandar a entidade, fundada em 1936 por Edsel Ford, filho único do lendário Henry Ford, e que administra um orçamento de US$ 16 bilhões.
“Não há dúvida de que o privilégio, seja na América, no Brasil ou na Europa, é confortável e todos gostamos de nossos confortos, que requerem sistemas e estruturas que os produzem. Reconhecer isso é uma tarefa difícil para um indivíduo, porque significa que você pode ter que abrir mão de algo. Trabalhamos duro para conquistar esses privilégios. Então, por que deveríamos abrir mão deles? Bem, eu argumento que deveríamos abrir mão deles, que não devemos acumular todo o privilégio, porque isso gerará raiva e ressentimento nas massas e, no final das contas, prejudicará toda a sociedade e, portanto, nos prejudicará. A história nos mostra isso”, lembra Walker.