9 de abril de 2024 | Estratégia ESG, ,

A (in)determinação do cuidar

Por Alexandre Gaspari

Maria de Fátima Santos nasceu em Apuaiarés, cidade do interior do Ceará, a cerca de 130 km da capital, Fortaleza, em 1946. Sem perspectivas, sua numerosa família se mudou para o Paraná, onde também viveu no interior, trabalhando em fazendas. Na juventude conheceu Antônio e com ele se casou. Dessa união nasceram dois meninos, Ivan e José Roberto.

Buscando melhores condições de vida, Fátima e Antônio rumaram para Brasília. Viviam em condições precárias. Sem estudos, tentavam a vida onde era possível. Onde se ouvia que havia uma chance de sobrevivência, para lá iam. Assim, durante alguns anos, viveram de idas e vindas entre a capital federal e Manaus, no Amazonas. Em algumas situações apenas Antônio ia, mandava dinheiro e voltava tempos depois. Até que, nos 7 anos de seu filho mais velho, Antônio se foi e não mais voltou. Nem mandou mais dinheiro. Nem notícias. Nem nada.

Coube à ‘dona’ Fátima, então, garantir a sua sobrevivência e a de seus dois filhos. Fazia o que aprendeu para ganhar seu sustento. Trabalhou como manicure e costureira. Sem creche, contou com a ajuda de vizinhos para ‘vigiar’ e alimentar seus meninos.

Saía de casa no raiar do sol e voltava tarde da noite – morava no Gama, uma cidade da periferia brasiliense, e trabalhava no plano-piloto, dependendo de transporte público precário. Numa ocasião, ao colocar uma costela para cozinhar no início da madrugada, a panela pegou fogo, já que o cansaço extremo a fez dormir. Felizmente foi só um susto. Sem feridos. Mas também sem carne para dar para seus filhos.

Alguns anos depois Fátima conheceu um outro companheiro. E como fruto do namoro nasceu Eric, 16 anos mais novo que o primogênito. O pai dele a ajudava com recursos financeiros, e de vez em quando estava presente em momentos de lazer. Mas, depois de alguns anos, também sumiu e não mais voltou.

Não dava tempo para Fatinha lamentar. Na luta estava há décadas e na luta permaneceu. E assim criou praticamente sozinha seus 3 filhos. Dois deles se graduaram – o outro não fez sua graduação por escolha. Um deles, o mais velho, fez mestrado, doutorado e pós-doutorado e hoje é professor concursado de uma universidade pública do Rio de Janeiro. Este é Ivan. Meu marido.

E não cuidou apenas de seus filhos. Na rede de solidariedade que costuma se formar informalmente entre mulheres chefes de família como ela, também ajudou a cuidar de filhas e filhos de vizinhas. De vizinhos e vizinhas que adoeciam. De amigas que, com o passar do tempo, também precisavam de cuidado por problemas de saúde.

Nas poucas vezes em que conversamos sobre toda essa história, ‘dona’ Fátima nunca demonstrou contrariedade. A ‘baixinha arretada’ narrava sua vida como uma história de luta, sempre com alegria e com um gostinho de vitória por ter conseguido sozinha criar seus três filhos. Frisava a dificuldade que foi estar sozinha nessa tarefa, mas deixava evidente a sensação de ‘dever cumprido’.

‘Dona’ Fátima, a Fatinha, minha sogra, partiu deste mundo na semana passada. Na mesma semana, o Datafolha divulgou uma pesquisa mostrando que 69% dos brasileiros acham que a mulher deve ser a principal responsável pelo cuidado dos filhos recém-nascidos, embora, contraditoriamente, 67% achem que mulheres e homens deveriam ter o mesmo tempo de licença do trabalho para cuidar dos bebês.

A infância dos filhos de Fatinha se deu no final dos anos 1960 e anos 1970, dos mais velhos, e anos 1980, do mais novo. Um período temporal quando, apesar das reivindicações já explícitas por mudanças, as mulheres eram fadadas a ser as únicas responsáveis pelo cuidado, seja dos filhos, seja dos pais, seja de todo mundo, praticamente. No entanto, 40 anos depois, essa responsabilidade, que já deveria ter sido dividida, continua sendo atribuída a elas, mostra o Datafolha.

É muito fácil chamar ‘dona’ Fátima e tantas mulheres como ela que assumiram (e ainda assumem) sozinhas a corajosa tarefa de cuidar dos filhos, dos pais, de todo mundo, de ‘guerreiras’. São mesmo. Difícil é desnaturalizar o cuidado como uma questão feminina e torná-lo uma ação que é comum de todos os gêneros.

Que todes nós sejamos ‘dona’ Fátima. Seja com recém-nascidos, crianças, adolescentes, adultos e velhos.

Somente quando o sujeito de verbo ‘cuidar’ for indeterminado no gênero e determinado na ação, em qualquer fase da vida, saberemos que conseguimos. Que assim seja.

Por: Alexandre Gaspari