Ontem foi o Dia das Mães. Nos últimos dias, como habitualmente acontece todos os anos, imprensa e programas de entretenimento apresentaram histórias de variadas mulheres e suas relações com a maternidade. Mães donas de casa. Mães que trabalham fora. Mães adotivas. Mães esportistas. Mães de muitos filhos. Mães que sofreram a perda de um filho e que sofrem com a chegada do segundo domingo de maio a cada ano, mas que tentam seguir a vida.
Há um dito popular que diz que ‘mãe só tem uma’. Mas a realidade joga essa máxima por terra rapidamente. Há, obviamente, a mãe que pare e que cria também. Mas há também ‘apenas’ a mãe que pare e ‘apenas’ a mãe que cria. A avó que vira mãe dos netos, compartilhando ou assumindo a maternidade de filhas. Tias, primas, amigas e, por que não, também homens que ‘multiplicam’ a maternidade com uma mulher. Mulheres em relações amorosas que são duas mães de uma mesma criança. Não é nada novo, está no dia a dia, do nosso lado.
No entanto, uma escola em Feira de Santana, na Bahia, decidiu que, quando se trata de mães lésbicas, ‘só tem uma’. Só pode ter uma. Na festa promovida em comemoração ao Dia das Mães – outra rotina anual –, o colégio decidiu que apenas uma das mães de uma menina de quatro anos, autista, poderia ir à celebração. A situação foi denunciada em post no Instagram pela jornalista Lorena Coutinho e repercutida pelos jornais A Tarde e Bahia Notícias.
A mensagem enviada pela escola às mães, reproduzida por Lorena, mostra o absurdo da situação. ‘Boa tarde, família! Estamos entrando em contato, pois verificamos dois nomes de representantes na lista de homenagem às mães ou responsáveis. Estamos preparando esse momento com todo carinho que a mãe ou representante merece, contudo, tratando-se de um ambiente de educação, no qual a construção e cumprimento de regras inclui ética e respeito ao direito do outro, enviamos um comunicado anterior, enfatizando que cada criança terá direito somente a um representante por família.’
Fiz o friso acima para ressaltar uma característica bastante comum em narrativas de espaços institucionais – como a escola, mas não apenas nela – para disfarçar sua LGBTIfobia: o ‘respeito ao direito do outro’. Incrementando o disfarce, apela-se para ‘cumprimento de regras’ e até ‘ética’. E a ‘cereja do bolo’ particular nesse caso da dissimulação LGBTIfóbica é apelar para o ‘ambiente de educação’.
‘Traduzindo’ o que de fato a escola quis dizer: ‘não temos a obrigação de explicar para outras crianças que coleguinhas delas têm duas mães – e talvez alguns tenham dois pais, mas deixemos isso para agosto –, apesar de sermos oficialmente um ambiente de educação. A maioria das mães são heterossexuais e muitas estão incomodadas com o fato de duas lésbicas terem sua filha estudando aqui. Mas, como não há um motivo real para negarmos sua matrícula sem sermos processados judicialmente por discriminação, aceitamos, já que na maioria do tempo a homossexualidade de vocês não será vista na escola. Mas daí a vocês duas quererem participar da celebração do Dia das Mães é demais! Os outros têm direitos; vocês, não. Ética? Desconhecemos do que se trata’.
Outra ignorância disfarçada no pensamento da escola, bastante comum no imaginário popular, é que casais de pessoas do mesmo sexo/gênero estabelecem uma divisão sexual e de gênero similar a dos heterossexuais – a isso chamamos ‘heteronormatividade’. ‘Quem é o homem e quem é a mulher da relação?’ é uma das perguntas mais constrangedoras e ridículas que homossexuais costumam escutar. O que deixa a dúvida: será que no Dia dos Pais a escola vai deixar a mãe excluída na celebração do dia de ontem participar da comemoração, já que ela seria o ‘homem’ da relação, proibindo a ida da outra?
Maio é considerado o ‘mês das mães’. Também é mês do Dia Internacional de Combate à LGBTIfobia. No Brasil, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a demora do Congresso em aprovar uma lei que proteja a população LGBTQIA+ e determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passasse a ser considerada crime, enquadrando-se na Lei n° 7.716/89, a Lei do Racismo, até que o Legislativo debata e vote uma legislação específica, explica a Gênero e Número.
É extremamente preocupante que uma escola, que deveria formar pessoas para a vida e, portanto, para a diversidade de gêneros, raças e classes, o respeito à diferença e a necessidade de inclusão, aja de forma criminosa. Discriminando explicitamente com argumentos toscos e falaciosos que não se sustentam na primeira olhada. Certamente não foi a primeira. Não é a única. Nem será a última.
Ou encaramos a urgência de debater e criar políticas públicas educacionais que abordem temas de gênero e sexualidade – e não apenas para as crianças, devidamente adaptadas às suas idades, mas principalmente para o núcleo pedagógico das escolas, formado por adultos capazes de entender esses assuntos de forma direta – ou não teremos cidadania. Simples assim.
PS: Já que estamos falando de datas, hoje, 13 de maio, é o dia da abolição da escravatura (a escrita em minúsculo é proposital). A realidade da população negra no Brasil escancara que não há nada a comemorar. Esqueça Isabel – ensinada na escola como ‘a redentora’ – e lembre-se de Zumbi, que pessoas da minha geração (50+) pouco viram nos livros escolares.