26 de agosto de 2024 | Estratégia ESG, , , ,

Não é só um corpo estendido no chão

Por Kalinka Iaquinto

É muito comum as pessoas se dizerem indignadas com a falta de empatia e de humanidade do ser humano. Ao que parece, o mundo está ao contrário, as pessoas repararam e nem todos se importam.

Na última sexta-feira (23/8), no Rio de Janeiro, Luiz Felipe Silva dos Santos, um homem em situação de rua, foi morto a pauladas por um segurança. Um assassinato cometido em plena luz do dia, e na Praça Mauá, próximo a dois importantes equipamentos culturais da cidade.

Luiz Felipe era um homem negro de 43 anos que tinha uma história, uma trajetória que o levou às ruas. O espancamento foi presenciado por várias pessoas, inclusive por alguns guardas municipais. O motivo: um prato de comida solicitado e negado.

Ter fome é um denominador comum quando falamos de animais, racionais ou não. Mas, ao que parece, saciar essa necessidade básica, na prática, não é um direito de todos. Especialmente se quem tiver fome não for considerado digno de uma refeição. No caso de pessoas, se ela não colabora, se não oferta seu trabalho de algum modo, não deveria sequer imaginar que poderia pedir algo, desejar coisas ou se irritar com a situação na qual se encontra – como fez Luiz Felipe.

A semana passada iniciou com o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, celebrado em 19 de agosto. Mas terminou com um retrato bastante esclarecedor do quanto o olhar para essa parcela da população precisa ser ampliado e mais atencioso.

Enquanto uma vida foi ceifada, o restaurante seguiu aberto e vendendo suas refeições. As mesmas que motivaram o crime após serem negadas a uma pessoa. No dia seguinte a vida seguia: a música ecoava alta e as pessoas buscavam diversão. Nada parou por aquela vida que havia sido tirada. Impossível não recordar do filme de 2005, de Sérgio Bianchi, ‘Quanto Vale ou é por Quilo?’

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil chegou a 220 mil em 2023, um salto de 935% desde 2013. Durante a pandemia de covid-19, ainda segundo o Ipea, esse número superou 281 mil pessoas. Já um levantamento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) aponta 236 mil pessoas e traça o perfil majoritário: homens (87%), adultos (55%) e negros (68%).

A diferença entre os números reflete também a invisibilização dessas pessoas não apenas pela sociedade em geral, mas pelo poder público. Afinal, no Censo de 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não os considerou, já que apenas cidadãos domiciliados são entrevistados. Quem não vive em uma estrutura de paredes e teto não é contabilizado. Mesmo estando exposto, não é visto. Não “existe” oficialmente.

Os “n” motivos que levam cada pessoa em situação de rua a estar ali parecem ser desconsiderados, fazendo com que esses seres humanos sejam destituídos de sua humanidade. E muitas vezes quem os invisibiliza e desumaniza se diz muito humano. Ao ponto de presenciar um espancamento e seguir almoçando.

Pode-se perguntar: nada é feito? É. Desde janeiro deste ano a Política Nacional para a População de Rua (PNPSR) é lei. Ela deve ser implantada de maneira descentralizada e articulada por União, estados e municípios que – e aqui temos um alerta – aderirem à lei.

A PNPSR determina princípios e diretrizes como incentivos à geração de empregos e à contratação de pessoas em situação de rua, por exemplo. É um grande passo para avançar e integrar essas pessoas. Mas o que preocupa é como colocá-la em prática diante da apatia quanto aos diversos problemas que atingem essa população.

Quantas vidas ainda serão perdidas, quantos futuros serão jogados fora por falta de oportunidades, de atenção e de acolhimento? O caso na capital carioca infelizmente não é o único e nem será o último. Por isso é premente entender que sociedade desejamos e, principalmente, que tipo de seres humanos somos diante de um corpo brutalizado e estendido no chão.

Por: Kalinka Iaquinto