Há uma semana, eu me emocionava lendo o texto “Tudo o que eu quero é ser um bom pai!”, do querido amigo Eduardo Nunes. Assim como Edu, sou pai de duas “meninas” – só que hoje minhas filhas já são adultas. E avô de dois meninos, ainda crianças como as filhas do Edu. De cara, me identifiquei com as preocupações e os desafios da paternidade, que, felizmente, vem deixando para trás os ranços de machismo, misoginia e irresponsabilidade que marcaram várias gerações de pais.
Naquele momento, pensei em minhas falhas como pai. E acabei falhando também em identificar no emocionante artigo traços de uma naturalização da paternidade que nós, homens (e acredito que mulheres também) aprendemos desde criança: pai não amamenta. Conversei com Edu sobre isso, e ele, gentilmente, me cedeu este espaço.
Tão envolto em refletir sobre “ser pai”, ignoramos que essa mesma paternidade que, felizmente, não é mais a mesma, também não está mais restrita a pessoas que, biologicamente, são identificadas como “homens” ao nascer. E que justamente por isso ampliou todas as possibilidades associadas ao cuidado de uma outra pessoa – inclusive amamentar. Afinal, há homens transgênero que são pais e podem, sim, amamentar, como mostra a revista AzMina.
Por que falhei? Sou parceiro da Alter Conteúdo, responsável pela curadoria de notícias e revisão da Estratégia ESG. Mas, antes disso, sou um homem gay, cisgênero, ativista LGBTQIAP+ e pesquisador da área de gênero e sexualidade. Uma constante em meus estudos é justamente questionar a “naturalização” que a sociedade faz com os gêneros e as sexualidades. Coisas do tipo “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Ou “isso é coisa de homem, isso é coisa de mulher, é da natureza”. Então, por que também não vi que homens podem, sim, amamentar? Que não existe uma “natureza da paternidade”, assim como não há uma “natureza da maternidade”?
Ver. É exatamente aí que está o problema. Por mais que lutemos contra velhos preconceitos, por mais que trabalhemos constantemente para quebrar paradigmas socialmente criados, mas que usam uma falsa explicação da “natureza”, temos uma tremenda dificuldade de “ver” além daquilo que durante muitos anos aprendemos que “é natural”. Por mais que saibamos que isso não tem nada a ver com “natural”. Por mais que estudemos.
Para ver mais, ver além, ver o que de fato é, é preciso abrir bem os olhos – e que fique claro que isso nada tem a ver com o sentido da visão em si, fisiológico. É fugir do “vício” de enxergar somente aquilo que fomos criados para enxergar e que alguém disse que é o que deve ser enxergado. E, sobretudo, reconhecer quando falhamos nessa tarefa de olhar além do “visível” – atitude que deve ser permanente.
Trago dois depoimentos para dar visibilidade ao que costumamos achar que é “invisível”.
O primeiro deles é de Noah Scheffel, dado à revista Marie Claire em agosto do ano passado – o mês tido como “dos pais”. Noah é um homem trans, analista de tecnologia da informação e empreendedor social de Porto Alegre (RS), pai de duas meninas. Na verdade, Noah é pai de Helena e mãe de Anita, de quem se tornou mãe antes mesmo de fazer sua transição.
“Eu sou mãe de uma e pai de outra. Anita eu gestacionei e dei à luz antes da transição e ela tem um pai presente na vida dela. Sempre fiz papel de mãe, e aí desconstruí que mãe tem gênero e pai tem gênero. A Helena chegou na minha vida quando tinha quase dois anos de idade e a conheci porque é filha biológica da minha ex-esposa. Ela não tinha registro de pai e era uma criança que eu me via muito nela, com uma conexão muito forte. Meu relacionamento com a mãe dela evoluiu rapidamente e começamos a morar juntos, então pensei ‘por que não registrar no papel o que já fazia de parentalidade?'”
Noah continua: “Helena me chama de pai e Anita me chama de mãe, e sou a mesma pessoa. É importante poder desconstruir papéis impostos que o homem precisa ser isso e a mulher aquilo. Dá para ser os dois papéis em uma mesma figura”.
Também em agosto do ano passado, o designer criativo Apollo Arantes, de Recife (PE), então grávido de 8 meses, disse ao Brasil de Fato que “se o mundo não me enxerga como pai, mas se a minha criança me enxerga, para mim, isso é suficiente”. Ele é casado com a ativista e assessora parlamentar Amanda Palha, que é mulher trans.
Apesar da preocupação com o que sua criança poderá sofrer em sociedade tendo um pai e uma mãe trans, Apollo disse que encara a tarefa como mais um desafio de quem tem de lutar todo o tempo contra a invisibilidade e a discriminação.
“Enxergo muito como um desafio, mesmo, e a gente fica pensando como essa criança vai ser recebida fora de casa, porque ela tem um pai e uma mãe que são trans e quais as informações ela vai receber a respeito disso. Em nenhum outro momento da vida a gente pôde analisar e refletir antes, a gente sempre teve que enfrentar. Acho que a paternidade tem que ser validada pela criança, ela me entender como pai, ela entender a Amanda como a mãe dela.”
Fico com as lições de Noah e Apollo. Pai não tem gênero. Mãe não tem gênero. Dá pra ser pai e mãe ao mesmo tempo, ainda mais quando, cedo ou tarde, vemos que não há “funções” só de mãe, ou só de pai.
Ver. Enxergar. É disso que precisamos.