28 de agosto de 2023 | Estratégia ESG, , ,

Contratamos LGBTQIAPN+. Mas somente os ‘passáveis’…

Por Alexandre Gaspari

Há uns 15 anos, uma amiga me narrou um episódio que presenciou na empresa onde trabalhava. A companhia, de pequeno porte, estava contratando alguém para sua área de atendimento ao cliente, e várias pessoas tinham sido entrevistadas. Então, essa amiga ouviu da assistente de Recursos Humanos que não aprovava a contratação de um determinado candidato, homem, porque ele seria ‘afetado’ – traduzindo ao pé da letra, ‘afeminado demais’.

Naquela época, o ESG era ‘só mato’, engatinhava, ainda mais em empresas pequenas. De lá para cá muita coisa mudou, e para melhor. A diversidade ganhou espaço na agenda das companhias de todos os portes, e ações para criar um ambiente de trabalho diverso, com pessoas de diferentes raças, gêneros, sexualidades, crenças, entraram na governança das organizações. Em muitos casos, por uma razão ‘simples’: diversidade traz mais ideias, e com elas mais inovação, e com ela mais… dinheiro. A conta fecha.

É uma evolução, sem dúvida. Mas, pensando também que estamos falando de gente, de pessoas, e não apenas de cifras, será que isso acontece com a equidade e a inclusão que necessariamente devem estar atreladas à promoção dessa diversidade? Ou, em muitos casos, o que está acontecendo é mais um ‘washing’ para sair bem na foto?

A criadora de conteúdo Karina Minoda (@karina.minoda) se identifica no Instagram com a sugestiva frase ‘Representando o dia a dia do proletariado’. Ela é uma das mulheres retratadas pelo Estadão que deixaram seus empregos ‘tradicionais’ – por escolha pessoal ou mesmo por questões de saúde – para ironizar nas redes sociais o dia a dia das corporações, ‘com funcionários viciados em trabalho, reuniões improdutivas e chefes mandões’, diz o texto.

Neste Reels, Karina interpreta a dona de uma empresa em uma reunião com o RH para falar sobre diversidade. Segundo a empresária, o tema ‘está super em alta no LinkedIn, e a gente precisa se atualizar também, pra passar esse ar de empresa mais moderna’.

A empresária diz que pensou em ‘contratar gay’ e que acha uma boa colocá-los no SAC, já que é um pessoal ‘mais animado, mais carismático’, e talvez ‘combine bem com esse cargo’. Já ‘sapatão’, continua a empresária, ‘se for caminhoneira’ (masculina), ela determina que seja colocada na produção, ‘porque é um pouco desagradável ficar olhando no corredor, eu não gosto muito’. Mas, se a lésbica, for ‘mais feminina, a gente pode pensar em auxiliar administrativa, quero que vocês me mostrem fotos, pra eu poder avaliar também’.

Há um razoável período temporal que separa a decisão da assistente de RH daquela pequena empresa sobre o homem ‘afeminado’ – um fato real – e as sugestões – ironicamente caricatas, mas não irreais – da pseudo-empresária de Karina Minoda. Entre esses episódios, há um ESG no meio. Entretanto, o preconceito e a discriminação explícitos dos dois ‘fatos’ podem apenas ter recebido um lustre. Sim, estamos contratando gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, mas desde que eles/elas ‘passem’ – ou melhor, não ‘pareçam’ ser aquilo que são. Embora essa visão ‘do que são’ seja totalmente equivocada.

A questão da passabilidade passou a me incomodar há cerca de 10 anos, quando eu, homem gay assumido, casado com outro homem, ouvia que eu ‘nem parecia gay’. E que eu e meu marido éramos gays que ‘nos dávamos ao respeito’. E também ouvir de amigos gays como eu, mas ‘passáveis’, ‘masculinos’, que ‘essas bichinhas (ou seja, gays ‘afeminados’) não me representam’.

Essas opiniões, inclusive, foram o estopim para que eu voltasse à universidade e tentasse entender como gêneros, sexualidades e suas representações sociais – o homem ‘masculino’, a mulher ‘feminina’, como estabelecido pelas normas heterossexuais socialmente construídas – influenciam nossas vidas, sob qualquer aspecto, emocional, corporal, profissional.

A ‘passabilidade’ é muitas vezes uma estratégia de sobrevivência. Mesmo questionando a imposição de que ‘homens agem assim, mulheres agem assado’, independentemente de suas sexualidades, muitas pessoas LGBTQIAPN+ acabam se adaptando a essas regras arbitrárias. Às vezes para evitar violência, inclusive do Estado. Um caso notório foi o da repórter Fernanda Gentil, lésbica assumida, que, cobrindo a Copa do Mundo de 2018, na Rússia – que criminaliza a homossexualidade –, disse que estava ‘bem menininha’ para evitar problemas.

Então, vale a reflexão: a diversidade que as empresas estão implementando é diversa mesmo? Ela respeita as pessoas como de fato elas são? Ela valoriza essas diferenças? Ou se trata apenas de uma foto para o Linkedin? O que se quer são pessoas LGBTQIAPN+ ‘passáveis’, ou pessoas LGBTI+, e ponto final? Essas respostas são a diferença entre ações que podem mudar não apenas as empresas, mas a sociedade, e maquiagens instagramáveis – que, cedo ou tarde, são descobertas.

PS: Ainda nesse post de Karina Minoda, a empresária diz que também é preciso contratar um ‘deficiente’. ‘Eu acho muito legal se a gente encontrar um cadeirante, pra colocar aqui no escritório mesmo, eu quero ver ele passando pelos corredores, aí é legal tirar até umas fotos, pra gente colocar no Linkedin’, conclui.

Neste outro Reels sobre o tema ‘diversidade na empresa’, a empresária criada pela influenciadora diz não ser necessário contratar mais negros e negras, ‘porque já tem bastante, tem o pessoal da limpeza, da recepção, da manutenção’. Como ela quer mostrar essa ‘diversidade’ no Linkedin, apenas pede ao RH que, no dia da foto para a rede social, essas pessoas venham ‘com o cabelo arrumado’.

E como sua secretária saiu de licença-maternidade – o que acha absurdo, já que não consegue entender ‘essas mulheres que querem ter filhos’ –, a empresária determina a contratação de um homem para a vaga. E que a sua secretária seja demitida assim que voltar da licença.

Por: Alexandre Gaspari