4 de setembro de 2023 | Estratégia ESG, , , ,

Só envelhece quem quer? Ou quem pode?

Por Alexandre Gaspari

O assunto de hoje é velho. Tem gente que prefere adiá-lo pelo tempo que for possível, e se possível por uma eternidade. Tem gente que o chama por outros nomes – idoso, terceira idade e até ‘melhor idade’. Tem gente que acha que só é velho quem quer. E tem gente que acha que velho é sempre o outro, não ‘eu’.

Envelhecer. Envelhecer ‘com qualidade’. ‘Musculação ajuda a envelhecer com saúde’, diz uma matéria. ‘Quer envelhecer bem? Essas 8 dicas vão encurtar o caminho’, aconselha outra – embora tal título talvez não seja atrativo para quem, ao contrário, quer que o caminho para o envelhecimento seja cada vez mais longo, que não chegue nunca.

Mas costuma chegar. E buscamos eufemismos linguísticos ou sociológicos para o que aprendemos lá nos primeiros anos da escola de que se trata do que a biologia chama de ‘ciclo da vida’: nascemos, crescemos, reproduzimos, envelhecemos e morremos. Claro que nem todos cumprem essas etapas, mas, basicamente, assim é a vida.

O progresso da medicina e da biotecnologia, porém, criou o ‘elixir da juventude’. Assim, ficou combinado que só é velho quem quer. Como aponta a antropóloga Guita Grin Debert, envelhecer se tornou um ‘desleixo individual’, e que ‘não merece perdão’ para quem ‘se deixa envelhecer’. Não interessa se, para o nosso corpo, com o tempo (sim, ele continua passando), esse ‘elixir’ vira um placebo. Há limites para ‘não envelhecer’. Mas, quem liga, não é mesmo?

Na semana passada, ganhou repercussão um Reels da atriz Ingrid Guimarães com o sugestivo título ‘Envelheci. E daí?’. No vídeo, Ingrid, com o humor crítico que é sua marca, conta que ganhou o “selinho ‘tá bem para sua idade’”. Diz ela: ‘Atrás disso, tem uma coisinha camufladinha ali. Você tá bem para a sua idade, mas só para a sua idade. Comparando a outras idades, você não está tão bem. Todo mundo achou que você estaria velha nessa hora, mas você deu a volta em todo mundo. Você escondeu que está velha’.

Ingrid faz uma análise de que tal ‘selinho’, para as mulheres, é uma conquista árdua, batalhada, não é dado de graça, e permanece sob uma constante vigilância e verificação, nos moldes das contas de redes sociais. O que não acontece com os homens, que, segundo ela, ‘já nascem com o selinho’ do ‘bem para a sua idade’. E diz que envelhecer é coisa de mulher: afinal, as mulheres vivem mais e se cuidam mais que os homens – nem que esse cuidado seja por uma cobrança cruel e desigual sobre a mulher, que nunca pode ‘parecer velha’.

Esse é o lado ‘só é velho quem quer’ – que é muito mais cobrado das mulheres que dos homens, uma escancarada desigualdade de gênero. Mas é preciso pensar também que há outras facetas da passagem do tempo. E quando ‘só é velho quem pode’? Seja quem pode ‘pagar’ pelos progressos da medicina e da biotecnologia – o tal ‘elixir da juventude’ tem preço, e muitas vezes alto –, ou quem pode sobreviver à violência socioeconômica que insiste em encurtar a vida de camadas específicas da população?

O doutor Dráuzio Varella já tinha ‘dado a letra’: ‘O envelhecimento é um processo natural que envolve alterações fisiológicas, estruturais e químicas nas células. Mas essa mudança biológica inerente à vida não é igual para todas as pessoas. Além das questões físicas, o gênero, o contexto social e a raça têm um peso enorme nesse processo, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil, repleto de desigualdades e com um racismo que permeia a cultura’.

Em junho, foi lançado o estudo o ‘Envelhecimento e Desigualdades Raciais’, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria com o Itaú Viver Mais. A pesquisa confirma que, além de sofrer diretamente com os impactos de um racismo sistemático e estrutural, que oprime, humilha e nega direitos básicos, a população negra brasileira encara mais desafios para ‘envelhecer bem’. Ou seja, para negras e negros, envelhecer pode ser um ‘luxo’, não um direito.

Parece óbvio. Mas estamos tão preocupados/as com o envelhecer como uma questão pessoal, uma escolha, um ‘desleixo individual’, como disse Debert, que esquecemos que há pessoas que não têm o direito de envelhecer.

E envelhecer tem de ser um direito de todas e todos. E não um desleixo. Enquanto ser velho/velha for algo só para quem pode, não vamos envelhecer bem. Nem se quisermos.

Por: Alexandre Gaspari