Maio de 2011: o Supremo Tribunal Federal (STF) equipara as relações entre pessoas do mesmo sexo/gênero às uniões estáveis entre homens e mulheres. Foi o reconhecimento legal da união homoafetiva como um núcleo familiar.
Maio de 2013: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprova resolução obrigando cartórios civis a celebrar o casamento civil homoafetivo. Além disso, o CNJ determinou que os cartórios não poderiam se recusar a converter a união estável homoafetiva, garantida pelo STF dois anos antes, em casamento civil.
O direito ao casamento para pessoas do mesmo sexo e/ou gênero não veio de graça. Não caiu do céu, nem foi um “presente” do poder judiciário brasileiro. A obtenção desse direito – básico, diga-se de passagem – foi resultado de décadas de luta do movimento LGBTQIAPN+ no Brasil. Cujo início “oficial” como ação organizada se deu nos anos 1978/1979, com a formação do grupo Somos, em São Paulo, como mostram os antropólogos Júlio Assis Simões e Regina Facchini no livro “Na trilha do arco íris: do movimento homossexual ao LGBT”.
Antes dessas decisões do Judiciário, houve projetos de leis na Câmara e no Senado para equiparar heterossexuais e homossexuais no direito ao casamento. Uma das pioneiras foi Marta Suplicy. Em 1995, a então deputada federal apresentou um projeto de lei que nunca foi adiante. Mais de 20 anos depois, em 2017, Marta tentou ação semelhante quando senadora. “É um direito e ‘não tira pedaço’ de ninguém”, disse ela na época, em entrevista à GZH. Mesmo diante da óbvia observação de Marta – afinal, ninguém pergunta sua sexualidade no momento em que cobra impostos –, tudo continuou como dantes.
A elaboração de uma lei, e mesmo a inclusão do tema na Constituição, como desejava Marta, seria uma garantia definitiva contra arroubos de conservadorismo e, sobretudo, preconceito e discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+ que querem apenas se casar “no papel”, para que cônjuges tenham direitos que a instituição casamento garante. Afinal, apesar da determinação judicial, não faltaram tentativas parlamentares de retirar esse direito.
Uma delas ocorreu em 2015, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, tentou emplacar o Estatuto da Família, definindo “família” como “a união entre homem e mulher”. Outra se deu em 2018, quando a OAB recomendou que casais homossexuais registrassem oficialmente suas uniões, diante das ameaças de que, a partir de 2019, poderia haver movimentos parlamentares e do próprio governo contra esse direito.
Agora, em setembro de 2023, a cruzada discriminadora contra o direito de iguais de se casarem ataca novamente. Nesta terça-feira (19/9), a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara deverá votar o relatório do deputado Pastor Eurico (PL-PE) sobre o projeto de lei 580/2007, do ex-deputado federal Clodovil Hernandes. O relator rejeitou a proposta de Clodovil, e em substituição, propõe que relações entre pessoas do mesmo sexo não possam se equiparar ao casamento ou à entidade familiar, informa o Poder 360.
Para Eurico, o casamento é “um pacto que surge da relação conjugal, e que, por isso, não cabe a interferência do poder público, já que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é contrário à verdade do ser humano. O que se pressupõe aqui é que a palavra ‘casamento’ representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”.
A proposta de Eurico provocou uma imensa mobilização nas redes sociais. Um dos contragolpes foi liderado também por um pastor -o deputado Henrique Vieira (PSOL-RJ), que lançou a campanha #OAmorVence. A campanha foi apoiada e divulgada por vários artistas e celebridades, além de entidades ligadas ao movimento LGBTQIAPN+.
Quando Eurico fala em “verdade do ser humano”, o que ele faz é usar um dogma religioso contra um direito num Estado oficialmente laico. Assim, juristas como Fayda Belo, advogada especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, explicam que a proposta não se sustenta, porque a Constituição garante, como cláusula pétrea, a igualdade entre cidadãos e cidadãs, independente de sexo, gênero, raça ou classe social.
“Não se pode confundir sacramento com casamento. Sacramento é de cunho religioso e obviamente segue os critérios de certa religião. Casamento é um ato civil voluntário entre as partes, para que possa gerar efeitos jurídicos entre elas. Ou seja, ao Estado brasileiro cabe apenas registrar essa união visando preservar o direito dessas partes, decorrentes desse matrimônio, e não dizer com quem eu posso ou não me casar”, explica Fayda neste Reels.
Tudo indica, portanto, que a proposta é inconstitucional e não irá adiante. Mas não deixa de ser lamentável. Porque tenta tirar de pessoas, de gente, algo básico, abordado por Fernanda Lambach, CEO da FL Impacto e parceira da Alter Conteúdo, em seu belíssimo texto publicado aqui sobre pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica: dignidade.
Porque é disso que se trata. O casamento civil é apenas um direito a dar alguma dignidade a pessoas LGBTQIAPN+. E somente elas podem decidir se querem se casar, e com quem. E é obrigação do Estado dar a elas condições mínimas para isso.
Não custa repetir: os impostos não têm sexo nem gênero.