Há um ditado – machista – que diz que, na velhice dos pais, quem cuida mesmo é a filha. A narrativa que se construiu ao longo dos anos, e segue a lógica da maternidade ostensiva, necessária e onipresente, é perversa, na medida em que exclui a responsabilidade dos filhos homens, especialmente em relação ao afeto. Sem falar na presença, no apoio emocional, no custo financeiro e nas questões operacionais.
A perversidade se constrói nas falas repetidas e gravadas em pedra ao longo do tempo: ‘tenho uma família pra cuidar’, ‘é mais fácil pra você’, ‘eu não tenho jeito pra isso’, ‘não tenho tempo’, ‘não tenho’ qualquer coisa. Muito menos paciência para lidar com isso ou para aprender a lidar. É comprovado. Mais mulheres cuidam e deixam de viver suas vidas por esse cuidado com o outro.
Essa chamada ‘economia do cuidado’, considerada invisível por não entrar nas estatísticas, trata dessa dedicação ao outro. Vai além da criação dos filhos, e se entranha no cuidado dos pais, quando a demência ou a mobilidade interrompem parcial ou totalmente a autonomia do pai e/ou da mãe.
Há exceções à regra, claro. Mas, em geral, é à mulher que cabe, de um lado, a necessidade de preservar a pessoa atingida, em toda sua fragilidade e medo do desconhecido, para garantir que os males não a aflijam e que a qualidade de vida seja a possível dentro dessas adversidades. Do outro, os homens que ‘não sabem lidar com a situação’ não buscam aprender, não querem encarar o problema, fogem, cobram e atribuem essas responsabilidades à mulher, esteja ela no lugar de irmã, filha, tia, esposa. Qualquer uma cabe neste papel. Menos ele.
É delas esperado que, além dos filhos criados, do cuidado com a casa, além das suas funções profissionais e do papel de esposa sempre disponível, que cuide dos mais velhos. Que encontre horas extras para o cuidado, que ignore o sono, o cansaço, a exaustão, dores, pensamentos furtivos e, claro, qualquer possibilidade de diversão. Que se revista de paciência. Que se entronize na égide matriarca para cuidar tanto dos que chegam quanto dos que ‘insistem’ em ficar. E se esta mulher, por qualquer motivo, principalmente sua opção, não tiver um cônjuge e filhos, sua própria egrégora familiar por assim dizer, aí sim a prerrogativa do cuidar se extrapola em missão, vocacional, obrigatória e inescapável. Sagrada. Sacramentada. Exigida. Cobrada.
Da mulher que cuida também é esperado que se cuide na aparência para não ferir os olhos da sociedade em seu cansaço e finitude. A mulher que cuida deve tingir seus cabelos brancos, raspar os pelos, esconder rugas, reter o peso. Envelhecer sem marcas. A ela não é dado o direito de tomar seu chope no meio do dia, acumular barriga, curtir a aposentadoria bebendo com as amigas, ou jogando xadrez na praça. Não fica bem para ela se vestir larga, se jogar na rede, roncar à tarde ou ser livre de qualquer forma.
À mulher que cuida, só lhe cabe cuidar. Do outro. Do filho. Do marido. Do pai. Da mãe. E dela também – mas do jeito que dizem que ela deve se cuidar, não da forma que ela escolheu para si.
No primeiro dia do mês em que celebramos o Dia Internacional da Mulher, essa newsletter traz à tona um preconceito velado sobre o cuidado para abrir uma série que pretende discutir os direitos equânimes. Em que lugar estamos mesmo? Quão visíveis somos em nossas funções? Quão iguais são os nossos papéis?
De hoje até o dia 31 de março, vamos cuidar para que desejos, anseios, sonhos, e todo esse mosaico diverso de ideias que povoam as nossas cabeças venham à tona. Seremos 21 mulheres escrevendo diariamente editoriais por aqui. Mulheres de 20 a 70 anos. Que atuam na Alter – responsável por produzir essa news – e convidadas amigas. Serão visões multifacetadas de temas que permeiam nossas vidas, muito além de nossas funções atribuídas no acumular dos preconceitos, anos, dores e obrigações. Insights que têm como objetivo fisgar seu olhar para um dos muitos pontos que escapam nesta luta ingrata pela equidade.
Que venha março, que venha visibilidade, que venha o cuidado.
De nós para nós mesmas. Antes de tudo.