Há quase vinte anos trabalhando em iniciativas em prol do acesso à água e serviços de saneamento, praticamente todos os dias, e não somente no dia 22 de março, ainda vejo reações de surpresa, desconfiança e um claro distanciamento da realidade quando lembro que a metade dos brasileiros tem seus esgotos despejados sem tratamento em rios e mares. No país que conta com a maior reserva hídrica do mundo, causa estranheza dizer que 15% da população não é abastecida por água tratada.
Enquanto você checa suas redes sociais, responde uma mensagem ou se atualiza sobre as notícias do dia, tem alguém saindo de casa para buscar água num balde para, aí sim, começar a cuidar da rotina e da ordem prática do seu dia. Este alguém é uma mulher.
Onde quer que você esteja agora, certamente cruzou o seu caminho alguém que tem de pisar no esgoto para sair de casa, ou que precisa organizar a sua rotina conforme os dias em que a água estará disponível na torneira. Investir em saneamento é investir na ordem e organização das coisas, da vida pública ou privada.
Dados atualizados do estudo ‘O Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira’, que tive a oportunidade de liderar em 2018, produzido pela BRK Ambiental, Instituto Trata Brasil com o apoio da Rede Brasil do Pacto Global, indicam que 2,5 milhões de brasileiras não têm banheiro em casa.
O levantamento se baseia em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada do IBGE (PNADC), da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE e do Sistema Único de Saúde (DATASUS). O estudo faz um recorte da população feminina a partir do acesso ao saneamento básico para mostrar que a desigualdade de gênero está presente em todos os estágios da vida da mulher.
Quando alguém fica doente por uma virose trazida por água contaminada ou por uma desidratação, é a mulher quem falta ao trabalho para oferecer cuidado. É também a menina quem se dedica a cuidar da casa e ocupa seu tempo em busca de água enquanto poderia estar na escola.
Entre muitos dados preocupantes, o estudo apresenta um alento: o acesso universal ao abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto pode tirar imediatamente mais de 18 milhões de mulheres brasileiras da condição de pobreza.
O ODS 06 – ‘Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos’ – é tão relevante que seria possível listar centenas de situações que são presentes no nosso dia a dia e que exigem atuação imediata para a promoção de uma vida justa em um ambiente sustentável. Não é nada acadêmico, complexo ou muito distante, falarmos daquilo que nos abastece todos os dias no toque em uma torneira e que não deveria ser tratado como privilégio.
Se você ainda não estava conectado com esta realidade, que a partir deste 22 de março, ao ouvir falar sobre iniciativas de investimentos em saneamento, lembre-se de que os impactos podem contribuir para corrigir muitas das nossas desigualdades, inclusive a de gênero. Cada real aportado neste setor tem relação direta com o fim dos casos de dengue que novamente assolam o país, o fim de um desastre ambiental causado todos os dias pelos esgotos sem tratamento despejados na natureza, o fim de um ciclo vicioso pelo consumo de tempo e energia daquelas que precisam sair em busca de água nos ombros em vez de buscarem os seus sonhos todos os dias.
Juliana Calsa é jornalista, antropóloga e fundadora da Luzia Consultoria. Foi diretora de Comunicação da BRK Ambiental e liderou o movimento ‘Mulheres e Saneamento’, lançado em 2018, parceria entre BRK, Instituto Trata Brasil e Rede Brasil do Pacto Global
* Durante todo o mês de março, os editoriais da Estratégia ESG serão escritos exclusivamente por mulheres que compõem a equipe da Alter Conteúdo e convidadas. Mais do que uma homenagem ao Dia Internacional da Mulher, nosso objetivo é trazer reflexões variadas sobre a construção do feminino e suas implicações no dia a dia das mulheres.