2 de abril de 2024 | Estratégia ESG, , , ,

Conchita Zanon Figueira e a fome

Por Matheus Zanon

Fome

Abro esse artigo citando o nome de quem me inspirou a escrevê-lo. E me atrevo a contar uma história a partir de dois olhares temporais: do eu criança e do eu comunicador.

Exímia cozinheira, minha mãe sempre comeu raspa de panela. Falava sobre como gostava do arroz queimado no fundo, das partes menos nobres do frango. Com meu prato cheio de uma boa refeição, eu achava seu gosto peculiar, mas não questionava.

Muitos anos mais tarde, expandindo a base de relacionamentos, me deparei com uma história de uma mulher pobre que, para alimentar seus filhos, comia as raspas da panela. Me emocionei naquela hora, reconhecendo na postura da minha mãe uma história não contada. Porque quem tem fome também tem vergonha de admitir que a tem.

Filha mais velha de nove irmãos, sobrava para ela os afazeres domésticos e a responsabilidade com os irmãos mais novos. Minha avó Valdicéia – outra com muitas histórias não contadas e perdidas para a demência – intercalava o cuidado dos filhos com outra gravidez. É a história de muitas mulheres. E muitas delas com fome.

Outra história envolve o noivado da minha mãe. Ela trabalhava em uma fábrica de cimentos da região onde mora. Com o salário dela e do meu avô, abasteciam a casa de alimentos. Mesmo assim, carne era artigo raro. Lembro-me da história da Chiquinha, uma porquinha de estimação que virou um torresmo comido entre lágrimas da minha mãe e de seus irmãos.

Voltando ao noivado, meu pai, para que minha mãe comesse carne, comprou alguns bifes para o almoço dela. No dia seguinte, ao perguntar se ela tinha gostado, soube que o ‘presente’ foi a festa para os irmãos de sua namorada, que sequer provou os bifes. Pouco tempo depois, ele a pediu em casamento.

Conto essas histórias para celebrar os dados divulgados pelo Instituto Fome Zero, com base na PNAD contínua, que mostram que 13 milhões de pessoas deixaram de passar fome no país. Os dados são referentes ao 1º trimestre de 2022, quando 33 milhões de pessoas enfrentavam um cenário de grave insegurança alimentar, e o 4º trimestre de 2023, quando o número caiu para 20 milhões.

Mas ainda existem 20 milhões de pessoas passando fome no Brasil. Ou seja, a cada 10 brasileiros, um passa fome. Na minha bolha social, a fome não é uma preocupação. Quando expando o olhar para os projetos em que atuo, a informação dói.

20 milhões é um número cru. Não conta a história das milhões de mulheres e crianças – principalmente negras e indígenas – que lidam com a fome. Imagino que a fome dói em quem a sente, mas deveria doer muito mais naqueles que têm comida à mesa. Deveria causar vergonha em quem tem o que comer. Ainda mais após a ONU divulgar um relatório que mostra que 1 bilhão de refeições são jogadas no lixo todos os dias. Todos os dias. Enquanto 800 milhões de pessoas passam fome no planeta. Todos os dias.

Betinho, que recentemente ganhou uma estátua na Praia de Botafogo, já dizia que ‘quem tem fome, tem pressa’.

E a gente, que tem comida à disposição? Qual é a nossa urgência diante da fome dos outros?

Por: Matheus Zanon